A educação na periferia do capitalismo: construindo um
novo pacto
Um pouco da roda de conversa:
Parte 1
Parte 2
Renato Dagnino
Este texto adota um enfoque limitado aos condicionantes
socioeconômicos da policy e da politics relacionados à produção
do conhecimento. Aqueles que dão origem àquilo que eu costumo enfeixar, por
reconhecer a forma entrelaçada como elas estão sendo cada vez mais no mundo
inteiro elaboradas, mediante o conceito de política cognitiva: as políticas de
Educação e Ciência e Tecnologia.
E está centrado nas implicações que têm sobre a política cognitiva
os valores, interesses e comportamentos das classes proprietária e trabalhadora
e no modo como se constitui entre elas um pacto, intermediado pelo Estado
capitalista, acerca da educação. A respeito dessa categorização dicotômica,
binária, simplista e para muitos ultrapassada, esclareço que sua adoção é, mais
do que suficiente, necessária para elucidar aqueles condicionantes.
Privilegiando os valores e interesses dessa última, o texto encaminha
a análise no sentido da concepção de um novo pacto coerente com um projeto
societário “para além do capital”.
Seu percurso, usual na tradição intelectual crítica que tem
lugar na periferia do capitalismo, trata, primeiro e exemplarmente, a maneira
como aqueles condicionantes se manifestam nos países centrais (ou no Norte
Global). Depois, analisa a maneira como o pacto lá estabelecido vai se
instituindo, submetido às especificidades do contexto periférico e,
particularmente, brasileiro.
Também em consonância com essa tradição, o texto possui um
caráter francamente normativo. Por estar ancorado na experiência histórica e
nos anseios dos atores sociais subalternos e orientado para a sua consecução,
ele aponta aos governantes progressistas que ocupam o aparelho de Estado um
caminho para a constituição de um novo pacto tendo como referência os valores e
interesses da economia solidária.
Um pouco da história dos países centrais
Lá, a política cognitiva esteve sempre pautada por um pacto
entre a classe proprietária e a classe trabalhadora que tendeu a mascarar o
caráter antagônico dos seus interesses e valores.
Complementando aquelas anotações iniciais, indico que este
texto se organiza em torno de considerações a respeito de como se estabeleceu e
evoluiu este pacto, de como ele se encontra hoje fragilizado e de como cabe à
classe trabalhadora formular sua proposta orientada para uma educação “para
além do capital”.
Para a consolidação do capitalismo foi logo necessário
proporcionar aos trabalhadores o tipo de habilidade que a empresa demandava
para satisfazer velhas necessidades, de outras formas, e ir criando outras que
se apresentavam lucrativas. Aquela orientada a operar as inovações introduzidas
no processo de trabalho que ela controla e que, por isto, lhe permitem
contrabalançar a pressão dos trabalhadores pela redução da jornada e o aumento
do salário.
O fato de que o aumento de produtividade do trabalho
possibilitado pelas inovações não precisava ser compartilhado com os
trabalhadores com um aumento de salário tornou a empresa dos países centrais, amparada
pelos múltiplos subsídios concedidos pelo “seu” Estado, um “motor de inovação”.
À classe trabalhadora, desprovida dos meios de produção,
obrigada a vender sua força de trabalho (esta mercadoria que, sendo a única que
ele possui, é também a única que adiciona valor ao produto) e sem amparo para
organizar arranjos de produção e consumo autônomos, restavam poucas
alternativas.
Para evitar que a marcha desse “motor” a deixasse “para
trás”, e defender sua sobrevivência, ela foi obrigada a aceitar um processo de
contínua e empobrecedora “qualificação”; teve que se adaptar às mudanças
cognitivas que ele impunha. Elas implicavam a expropriação do conhecimento
tácito por ela dominado, sua paulatina codificação nas universidades capitalistas
de modo a impedir sua desapropriação e, como os meios de produção, transformado
em propriedade privada crescentemente monopolizada.
Caracterizava este pacto um “cercamento”, no âmbito
cognitivo, do que, no âmbito material, o capitalismo inerentemente provoca. Não
obstante, o validavam, entre outros fatores, as oportunidades do assalariamento
associada à consolidação do projeto capitalista de organização da sociedade
ocidental. Havia a expectativa de um futuro melhor para a classe trabalhadora
que contrastava com a brutalidade feudal e com a ameaça de exclusão social que
o marco inicial desse processo, a chamada revolução industrial, havia deixado.
As iniciativas que desde o final do século XIX procuraram capacitar
a classe trabalhadora, ou estender a ela o conhecimento da classe proprietária
no sentido de, ingenuamente, promover uma apropriação para liberá-la da
opressão, foram sempre escassas. Mais ainda foram aquelas que visaram a se contrapor
àquele conhecimento gerado pela classe proprietária, “seu” Estado, e suas
empresas.
A interpretação potencializada pelo processo de construção
do socialismo soviético, de que seria o desenvolvimento linear inexorável das
forças produtivas o que, ao tensionar as relações sociais de produção, levaria
a modos de produção cada vez melhores, predominou no âmbito da esquerda
marxista e, por inclusão, no movimento sindical.
Permaneceu intocado o dogma “transideológico” de que
existiria uma ciência verdadeira, intrinsecamente boa, universal e neutra (no
sentido de ser funcional para qualquer projeto político) e uma tecnologia, que
poderia aplicá-la para o bem ou para o mal. E que bastaria a apropriação pela
classe trabalhadora do conhecimento científico e tecnológico - as forças produtivas que estavam
momentaneamente sendo usadas a serviço do capital - para que ela pudesse construir o socialismo.
Essa situação inibiu o surgimento de uma visão crítica que percebesse
a artificialidade a-histórica e ideologicamente construída pelo capital em seu
benefício do apartamento ciência-tecnologia e, entendendo a tecnociência como
um conceito primitivo, permitisse o questionamento da neutralidade e do
determinismo. E que, ao compreender o caráter de construção social da
tecnociência que implicava que em seu processo de desenvolvimento ela estaria
sempre contaminada com os interesses e valores dominantes no contexto,
propusesse a adequação sociotécnica da
tecnociência capitalista na direção de uma tecnociência funcional ao projeto
político da classe trabalhadora.
Assim, embora o projeto capitalista estivesse sendo
seriamente contestado e apesar da ameaça que representava socialismo, não ocorreu,
por parte da classe trabalhadora, um questionamento do pacto da educação. Embora
a transição para o socialismo soviético estivesse gestando um novo tipo de
educação mais coerente com os interesses da classe trabalhadora, o modo como
ela estava ocorrendo, circunscrito e limitado - por razões táticas internas e
pelas pressões externas -, não chegou a despertar a classe trabalhadora dos
países capitalistas para a concepção de uma alternativa.
Embora tenham surgido iniciativas revolucionárias de
conscientização através da educação para impulsionar a transformação de “classe
em si” para “classe para si”, elas não chegaram a formular propostas capazes de
incidir no modo como se organizava a produção e circulação de bens e serviços.
Em consequência, essas iniciativas tampouco resultaram em movimentos capazes de
conduzir a propostas que levassem à configuração de um novo pacto com a classe
proprietária.
Resumindo: o comportamento da classe trabalhadora não foi
apenas reativo, no sentido de que tenha privilegiado a defesa dos interesses imediatos
que possuía sob a égide do capital. Ele também não foi proativo no sentido de
conceber o conhecimento que seria necessário para uma formação social que pudesse
situar-se “para além do capital”.
A conjuntura atual nos países centrais
O momento que vive o capitalismo nos países centrais parece
estar inviabilizando a manutenção desse pacto. Ele se encontra cada vez mais
fragilizado pela dinâmica do capitalismo ultra neoliberal que ao mesmo tempo
enfraquece a capacidade regulatória do Estado e, inextricavelmente, combina
aspectos de natureza geopolítica, econômica, social e tecnocientífica que
reforçam os privilégios da classe proprietária.
Não obstante, as condições objetivas engendrados por essa
dinâmica, ao tempo que acirram as contradições de classe existentes, parecem
apontar rumos para sua superação.
Analisando o “lado” da classe proprietária, vale ressaltar
três aspectos.
No nível individual estrito, do seu negócio, a empresa, mesmo
que se dispusesse fazê-lo, é incapaz de internalizar as externalidades
negativas nas esferas ambiental, econômica e social que de modo genocida ela vem
causando a todos os que habitam este planeta. Aquela empresa que o fizer,
contrariando a lógica atomizada e intrinsecamente egoísta que a rege, será
excluída do mercado por não conseguir transferir seu maior custo de produção ao
preço. Portanto, leitora e leitor, deixemo-nos de ilusões!
Não obstante, no nível coletivo, em que a classe
proprietária atua como classe, são cada vez mais frequentes declarações de que
seria aceitável um aumento do imposto sobre a renda e a riqueza e a adoção de
“moratórias” relacionadas às externalidades negativas causadas por
desenvolvimentos tecnocientíficos que ameaçam a manutenção dos seus negócios.
Mas é no nível das “suas” organizações não-governamentais e supranacionais
que estão ocorrendo as manifestações mais significativas para investigar as
características que poderia assumir o novo pacto interclassista em torno da
política cognitiva e, em particular, da educação.
O exemplo mais recente é a declaração da ONU acerca da urgente
necessidade de que sejam fomentados novos arranjos econômicos-produtivos e de
consumo (enfeixados naquilo que no Brasil chamamos de economia solidária) para
enfrentar as crises sociais e ambientais.
Retomando o assunto que interessa mais de perto, o da
análise do conhecimento em desenvolvimento, importa destacar que a pesquisa
tecnocientífica de viés empresarial, realizada majoritariamente nos
conglomerados transnacionais sempre com maciço financiamento público, não tem
sido capaz de evitar o desastre que estamos presenciando nas esferas ambiental,
econômica e social. Como digo aos meus alunos da disciplina de Ciência
Tecnologia e Sociedade, a Tecnociência Capitalista incorre em sete pecados
capitais: deterioração programada, obsolescência planejada, desempenho ilusório,
consumismo exacerbado, degradação ambiental, adoecimento sistêmico e sofrimento
psíquico
No que se refere particularmente à educação, a classe
proprietária não tem como propor nenhuma mudança significativa a não ser ações
pontuais para preencher lacunas de oferta de mão-de-obra causadas pela própria dinâmica
geopolítica, econômica, social e tecnocientífica do capitalismo ultra
neoliberal. Sem falar nas propostas amorais relacionadas à privatização da
educação…
Analisando o “lado” da classe trabalhadora, as ações
tradicionais de caráter reativo, até mesmo por estarem concentradas na defesa
dos interesses dos formalmente empregados, têm apresentado eficácia claramente
decrescente como resultado do fortalecimento dessa dinâmica ultra neoliberal.
Embora seja cada vez maior a parcela da classe trabalhadora “não
empregável”, e apesar do crescimento das iniciativas europeias visando à
criação de cooperativas, é ainda muito escassa a elaboração teórica necessária
para viabilizar medidas de política cognitiva para promover a implementação de
arranjos alternativos de produção e consumo. Como resultado do maior poder dos trabalhadores
formais e sindicalizados que conservam alguma capacidade de organização e
vocalização, não tem ocorrido uma valorização da produção e disseminação de
conhecimento para apoiar aquelas iniciativas associadas ao cooperativismo. Têm dificultado
as esacassas atividades realizadas nas instituições de ensino e pesquisa com
vistas a atender os interesses da classe trabalhadora a crescente alocação dos
recursos públicos à P&D empresarial.
Embora venha crescendo entre os trabalhadores situados nessas
instituições a percepção de que a Tecnociência Capitalista, desenvolvida pela e
para a empresa, não é adequada para a sucesso daqueles arranjos alternativos, e
de que é necessário reprojetá-la na direção da Tecnociência Solidária, são
insignificantes as tentativas de mudança das suas agendas de ensino, pesquisa e
extensão. Ainda menos significativas são as atividades de adequação sociotécnica
da Tecnociência Capitalista na direção da Tecnociência Solidária realizadas nessas
instituições em conjunto com os trabalhadores associados a esses arranjos.
Termino este ponto com uma brevíssima análise da correlação
de forças que permita prospectar um futuro desejável e, investigar a
possibilidade de gestação de um novo pacto.
As contradições do capitalismo ultra neoliberal, a virtual
impossibilidade de manutenção do tipo de organização da produção e do consumo
que ele adota e, em especial, as implicações do desenvolvimento tecnocientífico
a ele associado para a classe trabalhadora, fragilizam a capacidade propositiva
da classe proprietária. Não obstante, manifestações da classe trabalhadora que
surgem em muitos lugares contra os diferentes aspectos negativos e opressores
do ultra neoliberalismo estão apontando, ainda que por negação, para a
construção, na esfera cognitiva, de um cenário “para além do capital”.
À medida que a classe trabalhadora for formulando um novo
projeto societário, a economia solidária surgirá como seu elemento central. Por
representar mais do que uma utopia a ser construída, uma proposta concreta de
transformação das relações sociais de produção baseada na propriedade coletiva
dos meios de produção e na autogestão, ela se irá materializando mediante políticas
públicas voltadas à sua expansão e consolidação. A reorientação da política
cognitiva, dada sua importância como política-meio que confere viabilidade para
muitas outras políticas-fim, terá que ser por antecipação concebida de acordo
com os valores e interesses da classe trabalhadora.
É nesse processo que irá surgir uma proposta de educação
aderente ao objetivo de consolidação da economia solidária. E será a partir
dela que a classe trabalhadora irá negociar um novo pacto pela educação com a
classe proprietária.
Um pouco da história da periferia brasileira
Historicamente, na periferia do capitalismo, o pacto em
torno da política cognitiva e, particularmente, da educação, adquiriu especificidades.
A primeira, tem a ver com o modo como se deu a conquista e o
saqueio do território (o que ficou conhecido pelo eufemismo “colonização”). Ele
esteve desde o início marcado pela extração predatória de bens naturais - característica que hoje vai sendo
mundialmente denunciada - e pela exploração igualmente selvagem de
trabalho vivo (mais-valia) com a escravização dos indígenas, a expropriação da
sua terra, e o extermínio da maioria que não se deixava subjugar (estima-se que
haveria de 5 a 8 milhões e que no final do século 19 restavam menos de 500 mil).
E, logo em seguida, com o comércio de pessoas escravizadas provenientes do
continente africano (o que ficou conhecido pelo eufemismo “tráfico negreiro”).
As relações sociais de produção, que beneficiavam
internamente os que produziam na periferia os bens consumidos no centro, onde
já se expandia a extração de mais-valia relativa, estiveram centradas na
exploração da mais-valia absoluta. Foi dessa forma que a classe proprietária adquiriu
o costume de auferir elevado lucro pela sua atividade que até hoje conserva.
Sobre o associado à extração da prata e o ouro que da América hispânica, todos
sabemos. Conhecemos pouco sobre o que foi a produção das “esquisitices” realizada
com um custo extremamente baixo pelos conquistadores ainda recém chegados e que
eram vendidas a preço “internacional” a seus parentes que lá ficaram. Com
elevadas “eficiência” e lucratividade, eles iniciaram o primeiro complexo
mundial de agronegócio. De elevados requisitos cognitivos e envolvendo alta
complexidade logística a produção de açúcar de cana foi responsável pela
fundação de nossa atividade econômica.
Bem mais tarde, com a produção do café, foi montada uma
infraestrutura logística ainda mais sofisticada e custosa. Tecnologias (ou complexos
sociotécnicos) como a ferroviária, portuária, de energia e comunicação, que
estavam emergindo na Inglaterra não foram aqui apropriadas seguindo uma estratégia
cognitivamente mais adequada como a que ocorriam em países da Europa que também
“substituíam importações”. O fato de terem sido simplesmente compradas é um
indicio de que nossa classe proprietária considerava ser este era o modo mais
lucrativo de internar esses complexos sociotécnicos ao negócio que
compartilhavam com seus parentes.
Não me parece adequado considerar que teria sido uma divisão
internacional do trabalho imposta pelos “egoístas, usurpadores e malvados”
capitalistas da metrópole o que teria obrigado os “explorados e submetidos” a
se especializarem na produção de matérias-primas e se submeterem à importação
de manufaturas. O “intercâmbio desigual” que se estabelece entre os
conquistadores que aqui operaram e seus sócios que lá ficaram era um negócio
que permitia lucros extraordinários aos dois lados daqueles que patrocinavam a
conquista.
Todos sabemos da enorme quantidade de ouro, prata e outras
mercadorias que os conquistadores que para cá vieram proporcionaram aos seus
parentes que lá ficaram, e de sua importância, em especial quando trocaram de
mãos, para a consolidação do capitalismo. E, também, de como a mais-valia
gerada na periferia foi sendo transferida para o centro mediante os mutantes
mecanismos que caracterizam o “intercâmbio desigual”. Não obstante, o fato de
que não parece ter havido uma significativa diferença na qualidade da vida que
levavam, pode ser um indício de que a lucratividade nas duas pontas do negócio
em que se envolviam esses parentes era semelhante. Como estou longe de
pretender revisitar a nossa história, me atrevo a provocar quem a isto se
disponha com o que escrevi num artigo recente: “não é preciso ser economista
para perceber que se temos aqui a maior taxa de juros do mundo e ainda se
produz um alfinete brasileiro é porque nossa taxa de lucro é também a maior do
mundo”.
Essa característica do capitalismo nascente, que beneficiava
com vantagem os europeus e as primeiras gerações de proprietários brasileiros,
levou a que as relações de produção tipicamente capitalistas, baseadas na
exploração da mais -valia relativa que a inovação e o aumento da produtividade
do trabalho possibilitavam no centro do sistema, só viessem a aparecer por aqui
muito mais tarde. Isso só ocorreu, ainda que sem substituir aquelas baseadas na
exploração da mais-valia absoluta, quando aqui se difunde o padrão de
organização da produção e do consumo da empresa dos países centrais.
Por várias razões que não vou relembrar aqui, a formação
econômico-social periférica se caracteriza por uma significativa dependência em
relação aos países centrais. Nossa dependência cultural engendra um mercado interno
imitativo. Sua demanda tende a fazer com que a empresa aqui localizada produza
bens e serviços (especialmente os industriais) muito semelhantes àqueles
fabricados nos países centrais.
Nosso processo de industrialização via substituição de
importações visava, justamente, a satisfazer a demanda da classe proprietária
pelos bens que ela importava mediante os recursos que recebia das exportações
que fazia. Embora tenham havido brotes industriais em várias partes do
território, o que mostra que não existia um impedimento para tanto e sim um
acurado cálculo de rentabilidade, esse processo só se intensificou em função
das crises e guerras ocorridas nos países centrais que dificultavam a
importação de manufaturas.
Sua transformação num “modelo” que passou a condicionar o
conjunto das políticas públicas nacionais foi desencadeada por uma simples
leitura da classe proprietária da balança comercial do País que mostrava uma
deterioração dos termos de troca. Ao contrário do que seria adequado e do que
fizeram suas congêneres em outras latitudes, as características de nossa
industrialização não decorreram de uma avaliação acerca da melhor forma de
aproveitar nossas potenciais vantagens comparativas naturais e humanas.
Nacionalistas bem intencionados que até hoje denunciam o fato de não haver uma
“agregação de valor” às commodities teriam que perceber que isso se trata de um
irrepreensível comportamento economicamente racional.
Numa articulação que contou com a poderosa participação do
capital estrangeiro, com seus interesses e oferendas historicamente cambiantes,
ocupou o centro dinâmico desse “modelo” o estado de São Paulo. Espaço
capitalista dos negócios que, por ser beneficiado com uma reserva de mercado
para suas manufaturas, transformou o resto do nosso território numa “periferia
da periferia” fornecedora, inclusive, de força de trabalho barata.
Depois da escravizações indígena e africana e da importação
dos europeus famintos expulsos em função do novo modo de expansão capitalista
baseado na extração de mais-valia relativa, nossa classe proprietária concebeu
um outro “exército pré-industrial de reserva”. Agora recoberta por um verniz
mais capitalista, dado que industrializante, engendrou um outro canal de
suprimento de trabalhadores pouco exigentes e de baixo preço. Ele não
implicava, como veio a ocorrer nos países centrais, na emigração de pobres
vindos das ex-colônias; aqueles que hoje, depois de alavancar seus negócios,
“criam problemas” para o funcionamento de suas economias.
No que se chamava Região Norte e, particularmente no que
depois se denominou Nordeste, a fração “atrasada” e oligárquica da classe
proprietária ia grilando a terra indígena e concentrando a terra. Tendo isso
como matriz, conviveu, principalmente aí, mas no território como um todo, um processo
reiterado em que famílias de camponeses que produziam alimentos eram empurradas
para o oeste e, depois de desbravadas, tinham suas terras expropriadas pelo
latifúndio que ocupava a ponta local daquele negócio internacional.
O desenvolvimento urbano industrial, que se acelera a parir
da quinta década do século passado, potencializou esse processo pelo lado da
demanda de força de trabalho. Seu resultado foi o deslocamento, quase que
forçado e concentrado nas zonas mais degradadas das cidades, de mais de 40
milhões de pessoas (só entre 1975 e 2017). Assim, através de expedientes como o
que ficou conhecido como “indústria da seca” foi sendo preparado o terreno para
o que viria a ser a selvagem expansão do agronegócio e da exploração mineral.
No “sul maravilha” a fração “moderna” e industrial recebia
os trabalhadores expelidos que passavam a desempenhar as tarefas que o modelo
de industrialização exigia. Embora imitativo, multinacionalizado e pouco
intensivo em capacitação tecnológica, ele era muito vantajoso para os
interesses desta fração, haja vista a cobertura, intensidade e velocidade de
implantação que o caracterizou. A outra, a fração “atrasada” e oligárquica,
através das articulações políticas que se estabeleciam no âmbito do estilo
nacional desenvolvimentista do nosso Estado, que perpassou períodos civis e
militares, nunca deixaram de receber seu quinhão.
Isso tudo que escrevi acima não significa que eu desconheça
ou não aceite a evidência de que a classe proprietária dos países centrais e,
claro que em menor medida, a sua classe trabalhadora, não tenham se beneficiado
de nossa condição periférica e de sua contraparte, o imperialismo. E que isso
se deu no âmbito de uma divisão internacional do trabalho em que cabia aos,
primeiramente, conquistadores a produção de bens primários com escasso
conhecimento tecnocientífico localmente gerado. E que, aos seus parentes, cabia
a produção de bens e serviços com uma intensidade continuamente crescente de
conhecimento lá engenheirado e que, como eram adaptados ao caráter imitativo
(dado que culturalmente dependente) do estilo de desenvolvimento periférico,
eram também aqui produzidos.
O que sim quero dizer é que não me parece correto, embora
seja frequente, interpretar essa situação como algo prejudicial ao conjunto dos
habitantes de cada país periférico. Isso porque a compreensão de que suas
classes proprietárias se beneficiaram da “oportunidade de negócio”
proporcionada por essa situação, e que este benefício nunca “transbordou” para
a classe trabalhadora, é essencial para uma correta análise da política
cognitiva.
O efeito conjunto da dependência cultural, desse modelo de
desenvolvimento desigual e combinado, da pressão do mercado para a adoção de
tecnologia proveniente dos países centrais, da relativa escassez (ou
subutilização) da capacidade tecnocientífica nacional, do poder econômico e
político, e das vantagens auferidas pelas multinacionais, e de sua penetração
no tecido produtivo local, condiciona de modo profundo as atividades
concernentes à política cognitiva. O fato de que seja economicamente irracional
desenvolver internamente conhecimento tecnocientífico para produzir algo
demandado pelo mercado interno imitativo, de que os bens e serviços que aqui
geram o lucro das empresas já foi engenheirado alhures, é fundamental.
O que se verifica, devido também a uma muito menor
remuneração da mão-de-obra existente na periferia, é que a empresa que aqui
opera, seja nacional ou estrangeira, assuma um comportamento inovativo
claramente reflexo. Imitativo, caudatário e relativamente modesto, ele
realimenta a tendência primário-exportadora e rentista de nossa classe
proprietária que, encerrando o ciclo da industrialização via substituição de
importações promoveu a desindustrialização do País. Como não precisa
efetivamente inovar, a empresa pode lucrar sem ter que se preocupar em
“desviar” o recurso público que recebem para que seus empregados (ou
terceirizados) se “qualifiquem”.
O modo como os aspectos socioeconômicos e políticos que
privilegio nesta análise condiciona a educação passa também pelo reconhecimento
de que nossa política cognitiva, muito mais do que nos países de capitalismo
avançado, tem sido orientada pela nossa elite científica. É ela que “diz” o que
é uma criança que entra no jardim de infância deve ir aprendendo para poder
passar no vestibular de uma universidade pública. É ela que define, em última
instância e por default, devido à nossa condição periférica que faz com que
outros atores pouco participem na elaboração desta política, as características
do nosso pacto da educação.
As “antenas” dessa elite científica estiveram sempre, dada a
nossa condição periférica, orientadas pelo que fazem seus pares dos países
centrais. É ali que se origina o saber que “cultuam” nas instituições que, como
um enclave, foram - à imagem e
semelhança - aqui criadas.
Como consequência da adoção de agendas de ensino, pesquisa e
extensão de lá provenientes, demandas cognitivas (ou tecnocientíficas) embutidas
em muitas das necessidades coletivas por bens e serviços, especialmente aquelas
da classe trabalhadora que permanecem desatendidas, permanecem inexploradas.
Entre os muitos exemplos vale citar a situação que ocorreu
quando a expropriação da terra dos pequenos agricultores produtores de
alimentos e do Estado incitou o latifúndio a potencializar o agronegócio. Ao
mesmo tempo que aqueles passaram a ter suas demandas cognitivas desatendidas
devido ao desmantelamento da extensão rural, foi criada no início dos anos
setenta uma complexa e capilarizada estrutura de geração e difusão de
conhecimento para atender ao objetivo de acumulação da classe proprietária.
Entre outros, esse exemplo serve para mostrar que a em todo
o mundo baixa propensão da empresa a realizar pesquisa pode ser, também na
periferia, contrapesada. De fato, cada vez que um segmento da classe
proprietária dotado de poder político ou econômico, tinha, incorporado em seu
projeto político, uma demanda por conhecimento novo ou dificilmente obtenível, foi
possível, claro que através do “seu Estado”, desenvolvê-lo. Serve também para
argumentar que devido à sua alta complexidade e originalidade, as demandas
tecnocientíficas embutidas nas necessidades coletivas desatendidas, poderiam
gerar um círculo virtuoso de ocupação da capacidade subutilizada de nossas
instituições de ensino e pesquisa e de sua expansão e legitimação social.
Retomando o parágrafo que se iniciava com “O que sim quero
dizer...”, e salientando que o faço muito de passagem, já que aprofundar o
argumento me afastaria do assunto deste texto, é que pouco se deve hoje esperar
da propensão de nossa classe proprietária para aproveitar os favores
governamentais que desde sempre recebeu para adotar o comportamento “virtuoso”
que caracteriza suas congêneres dos países centrais. Políticas orientadas a
torná-la competitiva via agregação de valor às commodities, a facilitar sua
adesão a uma transição energética ou à adoção de comportamentos
socioambientalmente sustentáveis, etc., dificilmente encontrarão sucesso.
Concluindo essa parte, é importante salientar que, ao
contrário do que ocorreu nos países centrais, a vigência do pacto da educação não
teve como resultado uma situação minimamente favorável à classe trabalhadora. Em
função das características que assumiu nossa formação social capitalista, o pacto
aqui estabelecido não apresentou nem mesmo os limitados benefícios lá alcançados.
A constatação de que o fraco “desempenho” da nossa educação,
sobretudo quando avaliada segundo os indicadores dos países centrais, é
consequência do fato de ela, sendo como é, corresponder às necessidades
cognitivas demandadas pela classe proprietária, me leva a tomar emprestado uma
das frases lapidares de Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma
crise: é projeto”.
Preparando um novo pacto para a educação brasileira
Tendo delineado no final da seção “A conjuntura atual nos
países centrais” as características do cenário desejável, o novo projeto
societário, o papel que dentro dele irá assumir a economia solidária e como, a
partir de sua implantação, se irá gestando uma proposta a ser negociada com a
classe proprietária para o estabelecimento de um novo pacto, faço agora menção
a mais alguns aspectos de nossa realidade. Apesar da importância de fazê-lo,
visto que é assim que se pode conceber ações, o faço de forma muito sintética
uma vez que tenho escrito bastante sobre isso na mídia de esquerda.
No que se refere aos aspectos socioeconômicos e políticos
que simplificadamente entendo como condicionantes da evolução que terá o pacto,
estão presentes na cena brasileira duas estratégias que, embora não
excludentes, delimitam cursos de ação bem distintos em termos, entre outras, da
política cognitiva.
De um lado, encontra-se a estratégia do “emprego e salário”
baseada no estímulo à atividade empresarial para geração de crescimento
econômico. Muito alinhada com o nacional-desenvolvimentismo que por décadas
orientou nossa política pública, e apesar de ter sido relativamente bem sucedida
20 anos atrás, ela é crescentemente considerada insuficiente para combater o
legado de iniquidade, injustiça e degradação ambiental que recebeu o atual governo
de esquerda.
Inspirada nas experiências de “revolução industriosa” e no
potencial de geração de desenvolvimento da economia solidária, ganha força a
estratégia do “trabalho e renda”. Sem pretender exclusividade e compreendendo
que a relação de forças manterá o privilegiamento da “reindustrialização
empresarial” e a captura privada do poder de compra do Estado, seus partidários
ressaltam a conveniência de complementar, através da proposta da
“reindustrialização solidária”, a estratégia do “emprego e salário”.
Entre seus argumentos, apontam que dos 180 milhões de
brasileiras e brasileiros em idade de trabalhar e que que constituem a nossa
classe trabalhadora, apenas 30 têm carteira assinada”; e que existem 80 que
nunca tiveram e provavelmente nunca terão emprego.
E chamam a atenção para a experiência histórica
internacional dos governos de esquerda que fracassaram na implementação de suas
políticas socializantes. A dedicação desses governos em fazer funcionar o
Estado e a economia capitalistas para obter recursos para custear a
reorientação da política teria sido uma das causas históricas do seu insucesso.
Para evitar que as políticas sociais se tornem reféns do bom
funcionamento do capitalismo e possam reconstruir a democracia, dizem,
semelhantemente ao que vem ocorrendo no Norte, ser necessário outra governança
que fomente arranjos produtivos e de consumo baseados na propriedade coletiva
dos meios de produção, na solidariedade e na autogestão.
Partindo da constatação de que a desindustrialização foi uma
opção de nossa classe proprietária, de que o fomento da inserção de suas
empresas no mercado global implica privilégios desmedidos, e de que estas não
se interessam pelo nosso potencial de conhecimento tecnocientífico, os
partidários da estratégia “do trabalho e renda” e da proposta da
“reindustrialização solidária” defendem uma radical reorientação da política
cognitiva.
Para isso, para que seja possível atender aquelas demandas
cognitivas embutidos nas necessidades materiais coletivas insatisfeitas,
propõem que a elaboração da política cognitiva incorpore, além da elite
científica (cujas “antenas” tenderão a seguir orientadas para o Norte), um ator
até agora pouco escutado. Esse ator, as trabalhadoras e trabalhadores do
conhecimento, que atuam na docência, pesquisa, planejamento e gestão da política
cognitiva é o que detém nosso significativo e crescente potencial
tecnocientífico.
Por ser o efetivamente responsável pela sua operacionalização,
esse ator é o que poderá promover a reorientação necessária. Isso por ser, por
um lado, o que melhor poderá identificar aquelas necessidades por bens e serviços
e decodificá-las como demandas tecnocientíficas (muitas delas de evidente
originalidade e elevada complexidade), e “trazê-las” para o ambiente onde se
definem as agendas de ensino, pesquisa e extensão de nossas instituições. E,
por outro, o que melhor poderá representar o interesse público junto ao governo
e aos demais atores envolvidos com a política cognitiva.
Concluindo, só resta dizer que o caminho que me parece mais
adequado está assinalado. As condições para que ele seja de imediato trilhado
estão dadas.
Entre elas, chamo a atenção para uma auspiciosa
convergência. Muitas daquelas trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento defendem
a estratégia do “trabalho renda” e a proposta da “reindustrialização solidária”.
E defendem também que a política cognitiva esteja solidamente ligada aos
interesses e valores da classe trabalhadora.
Tudo isso implica que, de imediato, nossa educação deva
estar focada no atendimento às demandas cognitiva da economia solidária. É
elevada sua capacidade de acumulação de forças políticas e, muito importante no
prazo imediato, de fiança de governabilidade para o atual governo. É a partir
do potencial do conhecimento que possuem seus integrantes que se irá gestar o novo
pac