Palestra da:
Profa. Dr. Raquel Moraes – PPG Educação – Faculdade de Educação - UnB
III Simpóstio Internacional de Estudos em Ciência , Tecnologia e Sociedade na UnB, XI Sessão.
Palestra da:
Profa. Dr. Raquel Moraes – PPG Educação – Faculdade de Educação - UnB
III Simpóstio Internacional de Estudos em Ciência , Tecnologia e Sociedade na UnB, XI Sessão.
Dossiê Paulo Freire: Um projeto-piloto de alfabetização
de adultos – de Brasília para o Brasil
Raquel de Almeida Moraes
Eva Waisros Pereira
Maria Paula Vasconcelos Taunay
https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.104.5562
Palavras-chave: alfabetização de adultos; Brasília (DF); Plano Nacional de Alfabetização; Paulo Freire; emancipação
Resumo
O presente artigo resulta de investigação relativa à experiência de alfabetização de adultos realizada em Brasília nos seus primórdios. Iniciada em 1963, sob a coordenação de Paulo Freire, essa experiência constituiu o embrião do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), proposto pelo governo João Goulart. A pesquisa que serve de base para este estudo se desenvolveu mediante análise documental, orientada pela concepção crítica do método historiográfico. Os dados obtidos dialogam com os coletados no “Dossiê Paulo Freire”, concedido pela professora Maria de Souza Duarte ao acervo do Museu da Educação do Distrito Federal. Esse dossiê é composto por uma coleção de fotografias dos primeiros círculos de cultura em Brasília, bem como de reuniões das autoridades, de âmbito federal, responsáveis pelo PNA, além de documentos textuais relacionados ao objeto investigado. A riqueza de dados encontrados sobre Paulo Freire demonstra a importância de sua passagem pela nova capital e o caráter emancipador do projeto de alfabetização. A abrupta interrupção da experiência, pelo golpe de 1964, impediu a continuidade das políticas públicas de alfabetização de adultos em curso no Brasil e impôs o apagamento da presença do educador na capital do País durante a Ditadura Militar.
Palavras-chave: alfabetização de adultos; Brasília (DF); Plano Nacional de Alfabetização;
Paulo Freire; emancipação.
REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS PEDAGÓGICOS
■ ESTUDOS
11-15 Rev. bras. Estud. pedagog., Brasília, v. 104, e5562, 2023.
Paulo Freire, o Patrono da Educação Brasileira, sempre fomentou o uso das tecnologias digitais na educação, reconhecendo as demandas da sociedade contemporânea e as potencialidades dos recursos tecnológicos. Este artigo busca refletir sobre como a pedagogia desenvolvida por Paulo Freire vem sendo incorporada nos estudos realizados pela Comunidade Brasileira de Informática na Educação, a partir de uma revisão sistemática de literatura das produções científicas publicadas na revista Tecnologias, Sociedade e Conhecimento e no Portal de publicações da Comissão Especial de Informática na Educação. Grande parte dos estudos preocupa-se com questões de cunho humanista, com a profundidade e extensão das relações humanas como essenciais à construção de uma pedagogia autônoma e problematizadora, com o pensar crítico do educando-educador, e com o caráter autônomo e crítico do aprendiz, entre outras questões intensamente defendidas por
Acesse o artigo na íntegra em:
https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tsc/article/view/15932
A educação na periferia do capitalismo: construindo um
novo pacto[1]
Um pouco da roda de conversa:
Renato Dagnino
Este texto adota um enfoque limitado aos condicionantes socioeconômicos da policy e da politics relacionados à produção do conhecimento. Aqueles que dão origem àquilo que eu costumo enfeixar, por reconhecer a forma entrelaçada como elas estão sendo cada vez mais no mundo inteiro elaboradas, mediante o conceito de política cognitiva: as políticas de Educação e Ciência e Tecnologia.
E está centrado nas implicações que têm sobre a política cognitiva os valores, interesses e comportamentos das classes proprietária e trabalhadora e no modo como se constitui entre elas um pacto, intermediado pelo Estado capitalista, acerca da educação. A respeito dessa categorização dicotômica, binária, simplista e para muitos ultrapassada, esclareço que sua adoção é, mais do que suficiente, necessária para elucidar aqueles condicionantes.
Privilegiando os valores e interesses dessa última, o texto encaminha a análise no sentido da concepção de um novo pacto coerente com um projeto societário “para além do capital”.
Seu percurso, usual na tradição intelectual crítica que tem lugar na periferia do capitalismo, trata, primeiro e exemplarmente, a maneira como aqueles condicionantes se manifestam nos países centrais (ou no Norte Global). Depois, analisa a maneira como o pacto lá estabelecido vai se instituindo, submetido às especificidades do contexto periférico e, particularmente, brasileiro.
Também em consonância com essa tradição, o texto possui um caráter francamente normativo. Por estar ancorado na experiência histórica e nos anseios dos atores sociais subalternos e orientado para a sua consecução, ele aponta aos governantes progressistas que ocupam o aparelho de Estado um caminho para a constituição de um novo pacto tendo como referência os valores e interesses da economia solidária.
Um pouco da história dos países centrais
Lá, a política cognitiva esteve sempre pautada por um pacto entre a classe proprietária e a classe trabalhadora que tendeu a mascarar o caráter antagônico dos seus interesses e valores.
Complementando aquelas anotações iniciais, indico que este texto se organiza em torno de considerações a respeito de como se estabeleceu e evoluiu este pacto, de como ele se encontra hoje fragilizado e de como cabe à classe trabalhadora formular sua proposta orientada para uma educação “para além do capital”.
Para a consolidação do capitalismo foi logo necessário proporcionar aos trabalhadores o tipo de habilidade que a empresa demandava para satisfazer velhas necessidades, de outras formas, e ir criando outras que se apresentavam lucrativas. Aquela orientada a operar as inovações introduzidas no processo de trabalho que ela controla e que, por isto, lhe permitem contrabalançar a pressão dos trabalhadores pela redução da jornada e o aumento do salário.
O fato de que o aumento de produtividade do trabalho possibilitado pelas inovações não precisava ser compartilhado com os trabalhadores com um aumento de salário tornou a empresa dos países centrais, amparada pelos múltiplos subsídios concedidos pelo “seu” Estado, um “motor de inovação”.
À classe trabalhadora, desprovida dos meios de produção, obrigada a vender sua força de trabalho (esta mercadoria que, sendo a única que ele possui, é também a única que adiciona valor ao produto) e sem amparo para organizar arranjos de produção e consumo autônomos, restavam poucas alternativas.
Para evitar que a marcha desse “motor” a deixasse “para trás”, e defender sua sobrevivência, ela foi obrigada a aceitar um processo de contínua e empobrecedora “qualificação”; teve que se adaptar às mudanças cognitivas que ele impunha. Elas implicavam a expropriação do conhecimento tácito por ela dominado, sua paulatina codificação nas universidades capitalistas de modo a impedir sua desapropriação e, como os meios de produção, transformado em propriedade privada crescentemente monopolizada.
Caracterizava este pacto um “cercamento”, no âmbito cognitivo, do que, no âmbito material, o capitalismo inerentemente provoca. Não obstante, o validavam, entre outros fatores, as oportunidades do assalariamento associada à consolidação do projeto capitalista de organização da sociedade ocidental. Havia a expectativa de um futuro melhor para a classe trabalhadora que contrastava com a brutalidade feudal e com a ameaça de exclusão social que o marco inicial desse processo, a chamada revolução industrial, havia deixado.
As iniciativas que desde o final do século XIX procuraram capacitar a classe trabalhadora, ou estender a ela o conhecimento da classe proprietária no sentido de, ingenuamente, promover uma apropriação para liberá-la da opressão, foram sempre escassas. Mais ainda foram aquelas que visaram a se contrapor àquele conhecimento gerado pela classe proprietária, “seu” Estado, e suas empresas.
A interpretação potencializada pelo processo de construção do socialismo soviético, de que seria o desenvolvimento linear inexorável das forças produtivas o que, ao tensionar as relações sociais de produção, levaria a modos de produção cada vez melhores, predominou no âmbito da esquerda marxista e, por inclusão, no movimento sindical.
Permaneceu intocado o dogma “transideológico” de que existiria uma ciência verdadeira, intrinsecamente boa, universal e neutra (no sentido de ser funcional para qualquer projeto político) e uma tecnologia, que poderia aplicá-la para o bem ou para o mal. E que bastaria a apropriação pela classe trabalhadora do conhecimento científico e tecnológico - as forças produtivas que estavam momentaneamente sendo usadas a serviço do capital - para que ela pudesse construir o socialismo.
Essa situação inibiu o surgimento de uma visão crítica que percebesse a artificialidade a-histórica e ideologicamente construída pelo capital em seu benefício do apartamento ciência-tecnologia e, entendendo a tecnociência como um conceito primitivo, permitisse o questionamento da neutralidade e do determinismo. E que, ao compreender o caráter de construção social da tecnociência que implicava que em seu processo de desenvolvimento ela estaria sempre contaminada com os interesses e valores dominantes no contexto, propusesse a adequação sociotécnica da tecnociência capitalista na direção de uma tecnociência funcional ao projeto político da classe trabalhadora.
Assim, embora o projeto capitalista estivesse sendo seriamente contestado e apesar da ameaça que representava socialismo, não ocorreu, por parte da classe trabalhadora, um questionamento do pacto da educação. Embora a transição para o socialismo soviético estivesse gestando um novo tipo de educação mais coerente com os interesses da classe trabalhadora, o modo como ela estava ocorrendo, circunscrito e limitado - por razões táticas internas e pelas pressões externas -, não chegou a despertar a classe trabalhadora dos países capitalistas para a concepção de uma alternativa.
Embora tenham surgido iniciativas revolucionárias de conscientização através da educação para impulsionar a transformação de “classe em si” para “classe para si”, elas não chegaram a formular propostas capazes de incidir no modo como se organizava a produção e circulação de bens e serviços. Em consequência, essas iniciativas tampouco resultaram em movimentos capazes de conduzir a propostas que levassem à configuração de um novo pacto com a classe proprietária.
Resumindo: o comportamento da classe trabalhadora não foi apenas reativo, no sentido de que tenha privilegiado a defesa dos interesses imediatos que possuía sob a égide do capital. Ele também não foi proativo no sentido de conceber o conhecimento que seria necessário para uma formação social que pudesse situar-se “para além do capital”.
A conjuntura atual nos países centrais
O momento que vive o capitalismo nos países centrais parece estar inviabilizando a manutenção desse pacto. Ele se encontra cada vez mais fragilizado pela dinâmica do capitalismo ultra neoliberal que ao mesmo tempo enfraquece a capacidade regulatória do Estado e, inextricavelmente, combina aspectos de natureza geopolítica, econômica, social e tecnocientífica que reforçam os privilégios da classe proprietária.
Não obstante, as condições objetivas engendrados por essa dinâmica, ao tempo que acirram as contradições de classe existentes, parecem apontar rumos para sua superação.
Analisando o “lado” da classe proprietária, vale ressaltar três aspectos.
No nível individual estrito, do seu negócio, a empresa, mesmo que se dispusesse fazê-lo, é incapaz de internalizar as externalidades negativas nas esferas ambiental, econômica e social que de modo genocida ela vem causando a todos os que habitam este planeta. Aquela empresa que o fizer, contrariando a lógica atomizada e intrinsecamente egoísta que a rege, será excluída do mercado por não conseguir transferir seu maior custo de produção ao preço. Portanto, leitora e leitor, deixemo-nos de ilusões!
Não obstante, no nível coletivo, em que a classe proprietária atua como classe, são cada vez mais frequentes declarações de que seria aceitável um aumento do imposto sobre a renda e a riqueza e a adoção de “moratórias” relacionadas às externalidades negativas causadas por desenvolvimentos tecnocientíficos que ameaçam a manutenção dos seus negócios.
Mas é no nível das “suas” organizações não-governamentais e supranacionais que estão ocorrendo as manifestações mais significativas para investigar as características que poderia assumir o novo pacto interclassista em torno da política cognitiva e, em particular, da educação.
O exemplo mais recente é a declaração da ONU acerca da urgente necessidade de que sejam fomentados novos arranjos econômicos-produtivos e de consumo (enfeixados naquilo que no Brasil chamamos de economia solidária) para enfrentar as crises sociais e ambientais.
Retomando o assunto que interessa mais de perto, o da análise do conhecimento em desenvolvimento, importa destacar que a pesquisa tecnocientífica de viés empresarial, realizada majoritariamente nos conglomerados transnacionais sempre com maciço financiamento público, não tem sido capaz de evitar o desastre que estamos presenciando nas esferas ambiental, econômica e social. Como digo aos meus alunos da disciplina de Ciência Tecnologia e Sociedade, a Tecnociência Capitalista incorre em sete pecados capitais: deterioração programada, obsolescência planejada, desempenho ilusório, consumismo exacerbado, degradação ambiental, adoecimento sistêmico e sofrimento psíquico
No que se refere particularmente à educação, a classe proprietária não tem como propor nenhuma mudança significativa a não ser ações pontuais para preencher lacunas de oferta de mão-de-obra causadas pela própria dinâmica geopolítica, econômica, social e tecnocientífica do capitalismo ultra neoliberal. Sem falar nas propostas amorais relacionadas à privatização da educação…
Analisando o “lado” da classe trabalhadora, as ações tradicionais de caráter reativo, até mesmo por estarem concentradas na defesa dos interesses dos formalmente empregados, têm apresentado eficácia claramente decrescente como resultado do fortalecimento dessa dinâmica ultra neoliberal.
Embora seja cada vez maior a parcela da classe trabalhadora “não empregável”, e apesar do crescimento das iniciativas europeias visando à criação de cooperativas, é ainda muito escassa a elaboração teórica necessária para viabilizar medidas de política cognitiva para promover a implementação de arranjos alternativos de produção e consumo. Como resultado do maior poder dos trabalhadores formais e sindicalizados que conservam alguma capacidade de organização e vocalização, não tem ocorrido uma valorização da produção e disseminação de conhecimento para apoiar aquelas iniciativas associadas ao cooperativismo. Têm dificultado as esacassas atividades realizadas nas instituições de ensino e pesquisa com vistas a atender os interesses da classe trabalhadora a crescente alocação dos recursos públicos à P&D empresarial.
Embora venha crescendo entre os trabalhadores situados nessas instituições a percepção de que a Tecnociência Capitalista, desenvolvida pela e para a empresa, não é adequada para a sucesso daqueles arranjos alternativos, e de que é necessário reprojetá-la na direção da Tecnociência Solidária, são insignificantes as tentativas de mudança das suas agendas de ensino, pesquisa e extensão. Ainda menos significativas são as atividades de adequação sociotécnica da Tecnociência Capitalista na direção da Tecnociência Solidária realizadas nessas instituições em conjunto com os trabalhadores associados a esses arranjos.
Termino este ponto com uma brevíssima análise da correlação de forças que permita prospectar um futuro desejável e, investigar a possibilidade de gestação de um novo pacto.
As contradições do capitalismo ultra neoliberal, a virtual impossibilidade de manutenção do tipo de organização da produção e do consumo que ele adota e, em especial, as implicações do desenvolvimento tecnocientífico a ele associado para a classe trabalhadora, fragilizam a capacidade propositiva da classe proprietária. Não obstante, manifestações da classe trabalhadora que surgem em muitos lugares contra os diferentes aspectos negativos e opressores do ultra neoliberalismo estão apontando, ainda que por negação, para a construção, na esfera cognitiva, de um cenário “para além do capital”.
À medida que a classe trabalhadora for formulando um novo projeto societário, a economia solidária surgirá como seu elemento central. Por representar mais do que uma utopia a ser construída, uma proposta concreta de transformação das relações sociais de produção baseada na propriedade coletiva dos meios de produção e na autogestão, ela se irá materializando mediante políticas públicas voltadas à sua expansão e consolidação. A reorientação da política cognitiva, dada sua importância como política-meio que confere viabilidade para muitas outras políticas-fim, terá que ser por antecipação concebida de acordo com os valores e interesses da classe trabalhadora.
É nesse processo que irá surgir uma proposta de educação aderente ao objetivo de consolidação da economia solidária. E será a partir dela que a classe trabalhadora irá negociar um novo pacto pela educação com a classe proprietária.
Um pouco da história da periferia brasileira
Historicamente, na periferia do capitalismo, o pacto em torno da política cognitiva e, particularmente, da educação, adquiriu especificidades.
A primeira, tem a ver com o modo como se deu a conquista e o saqueio do território (o que ficou conhecido pelo eufemismo “colonização”). Ele esteve desde o início marcado pela extração predatória de bens naturais - característica que hoje vai sendo mundialmente denunciada - e pela exploração igualmente selvagem de trabalho vivo (mais-valia) com a escravização dos indígenas, a expropriação da sua terra, e o extermínio da maioria que não se deixava subjugar (estima-se que haveria de 5 a 8 milhões e que no final do século 19 restavam menos de 500 mil). E, logo em seguida, com o comércio de pessoas escravizadas provenientes do continente africano (o que ficou conhecido pelo eufemismo “tráfico negreiro”).
As relações sociais de produção, que beneficiavam internamente os que produziam na periferia os bens consumidos no centro, onde já se expandia a extração de mais-valia relativa, estiveram centradas na exploração da mais-valia absoluta. Foi dessa forma que a classe proprietária adquiriu o costume de auferir elevado lucro pela sua atividade que até hoje conserva. Sobre o associado à extração da prata e o ouro que da América hispânica, todos sabemos. Conhecemos pouco sobre o que foi a produção das “esquisitices” realizada com um custo extremamente baixo pelos conquistadores ainda recém chegados e que eram vendidas a preço “internacional” a seus parentes que lá ficaram. Com elevadas “eficiência” e lucratividade, eles iniciaram o primeiro complexo mundial de agronegócio. De elevados requisitos cognitivos e envolvendo alta complexidade logística a produção de açúcar de cana foi responsável pela fundação de nossa atividade econômica.
Bem mais tarde, com a produção do café, foi montada uma infraestrutura logística ainda mais sofisticada e custosa. Tecnologias (ou complexos sociotécnicos) como a ferroviária, portuária, de energia e comunicação, que estavam emergindo na Inglaterra não foram aqui apropriadas seguindo uma estratégia cognitivamente mais adequada como a que ocorriam em países da Europa que também “substituíam importações”. O fato de terem sido simplesmente compradas é um indicio de que nossa classe proprietária considerava ser este era o modo mais lucrativo de internar esses complexos sociotécnicos ao negócio que compartilhavam com seus parentes.
Não me parece adequado considerar que teria sido uma divisão internacional do trabalho imposta pelos “egoístas, usurpadores e malvados” capitalistas da metrópole o que teria obrigado os “explorados e submetidos” a se especializarem na produção de matérias-primas e se submeterem à importação de manufaturas. O “intercâmbio desigual” que se estabelece entre os conquistadores que aqui operaram e seus sócios que lá ficaram era um negócio que permitia lucros extraordinários aos dois lados daqueles que patrocinavam a conquista.
Todos sabemos da enorme quantidade de ouro, prata e outras mercadorias que os conquistadores que para cá vieram proporcionaram aos seus parentes que lá ficaram, e de sua importância, em especial quando trocaram de mãos, para a consolidação do capitalismo. E, também, de como a mais-valia gerada na periferia foi sendo transferida para o centro mediante os mutantes mecanismos que caracterizam o “intercâmbio desigual”. Não obstante, o fato de que não parece ter havido uma significativa diferença na qualidade da vida que levavam, pode ser um indício de que a lucratividade nas duas pontas do negócio em que se envolviam esses parentes era semelhante. Como estou longe de pretender revisitar a nossa história, me atrevo a provocar quem a isto se disponha com o que escrevi num artigo recente: “não é preciso ser economista para perceber que se temos aqui a maior taxa de juros do mundo e ainda se produz um alfinete brasileiro é porque nossa taxa de lucro é também a maior do mundo”.
Essa característica do capitalismo nascente, que beneficiava com vantagem os europeus e as primeiras gerações de proprietários brasileiros, levou a que as relações de produção tipicamente capitalistas, baseadas na exploração da mais -valia relativa que a inovação e o aumento da produtividade do trabalho possibilitavam no centro do sistema, só viessem a aparecer por aqui muito mais tarde. Isso só ocorreu, ainda que sem substituir aquelas baseadas na exploração da mais-valia absoluta, quando aqui se difunde o padrão de organização da produção e do consumo da empresa dos países centrais.
Por várias razões que não vou relembrar aqui, a formação econômico-social periférica se caracteriza por uma significativa dependência em relação aos países centrais. Nossa dependência cultural engendra um mercado interno imitativo. Sua demanda tende a fazer com que a empresa aqui localizada produza bens e serviços (especialmente os industriais) muito semelhantes àqueles fabricados nos países centrais.
Nosso processo de industrialização via substituição de importações visava, justamente, a satisfazer a demanda da classe proprietária pelos bens que ela importava mediante os recursos que recebia das exportações que fazia. Embora tenham havido brotes industriais em várias partes do território, o que mostra que não existia um impedimento para tanto e sim um acurado cálculo de rentabilidade, esse processo só se intensificou em função das crises e guerras ocorridas nos países centrais que dificultavam a importação de manufaturas.
Sua transformação num “modelo” que passou a condicionar o conjunto das políticas públicas nacionais foi desencadeada por uma simples leitura da classe proprietária da balança comercial do País que mostrava uma deterioração dos termos de troca. Ao contrário do que seria adequado e do que fizeram suas congêneres em outras latitudes, as características de nossa industrialização não decorreram de uma avaliação acerca da melhor forma de aproveitar nossas potenciais vantagens comparativas naturais e humanas. Nacionalistas bem intencionados que até hoje denunciam o fato de não haver uma “agregação de valor” às commodities teriam que perceber que isso se trata de um irrepreensível comportamento economicamente racional.
Numa articulação que contou com a poderosa participação do capital estrangeiro, com seus interesses e oferendas historicamente cambiantes, ocupou o centro dinâmico desse “modelo” o estado de São Paulo. Espaço capitalista dos negócios que, por ser beneficiado com uma reserva de mercado para suas manufaturas, transformou o resto do nosso território numa “periferia da periferia” fornecedora, inclusive, de força de trabalho barata.
Depois da escravizações indígena e africana e da importação dos europeus famintos expulsos em função do novo modo de expansão capitalista baseado na extração de mais-valia relativa, nossa classe proprietária concebeu um outro “exército pré-industrial de reserva”. Agora recoberta por um verniz mais capitalista, dado que industrializante, engendrou um outro canal de suprimento de trabalhadores pouco exigentes e de baixo preço. Ele não implicava, como veio a ocorrer nos países centrais, na emigração de pobres vindos das ex-colônias; aqueles que hoje, depois de alavancar seus negócios, “criam problemas” para o funcionamento de suas economias.
No que se chamava Região Norte e, particularmente no que depois se denominou Nordeste, a fração “atrasada” e oligárquica da classe proprietária ia grilando a terra indígena e concentrando a terra. Tendo isso como matriz, conviveu, principalmente aí, mas no território como um todo, um processo reiterado em que famílias de camponeses que produziam alimentos eram empurradas para o oeste e, depois de desbravadas, tinham suas terras expropriadas pelo latifúndio que ocupava a ponta local daquele negócio internacional.
O desenvolvimento urbano industrial, que se acelera a parir da quinta década do século passado, potencializou esse processo pelo lado da demanda de força de trabalho. Seu resultado foi o deslocamento, quase que forçado e concentrado nas zonas mais degradadas das cidades, de mais de 40 milhões de pessoas (só entre 1975 e 2017). Assim, através de expedientes como o que ficou conhecido como “indústria da seca” foi sendo preparado o terreno para o que viria a ser a selvagem expansão do agronegócio e da exploração mineral.
No “sul maravilha” a fração “moderna” e industrial recebia os trabalhadores expelidos que passavam a desempenhar as tarefas que o modelo de industrialização exigia. Embora imitativo, multinacionalizado e pouco intensivo em capacitação tecnológica, ele era muito vantajoso para os interesses desta fração, haja vista a cobertura, intensidade e velocidade de implantação que o caracterizou. A outra, a fração “atrasada” e oligárquica, através das articulações políticas que se estabeleciam no âmbito do estilo nacional desenvolvimentista do nosso Estado, que perpassou períodos civis e militares, nunca deixaram de receber seu quinhão.
Isso tudo que escrevi acima não significa que eu desconheça ou não aceite a evidência de que a classe proprietária dos países centrais e, claro que em menor medida, a sua classe trabalhadora, não tenham se beneficiado de nossa condição periférica e de sua contraparte, o imperialismo. E que isso se deu no âmbito de uma divisão internacional do trabalho em que cabia aos, primeiramente, conquistadores a produção de bens primários com escasso conhecimento tecnocientífico localmente gerado. E que, aos seus parentes, cabia a produção de bens e serviços com uma intensidade continuamente crescente de conhecimento lá engenheirado e que, como eram adaptados ao caráter imitativo (dado que culturalmente dependente) do estilo de desenvolvimento periférico, eram também aqui produzidos.
O que sim quero dizer é que não me parece correto, embora seja frequente, interpretar essa situação como algo prejudicial ao conjunto dos habitantes de cada país periférico. Isso porque a compreensão de que suas classes proprietárias se beneficiaram da “oportunidade de negócio” proporcionada por essa situação, e que este benefício nunca “transbordou” para a classe trabalhadora, é essencial para uma correta análise da política cognitiva.
O efeito conjunto da dependência cultural, desse modelo de desenvolvimento desigual e combinado, da pressão do mercado para a adoção de tecnologia proveniente dos países centrais, da relativa escassez (ou subutilização) da capacidade tecnocientífica nacional, do poder econômico e político, e das vantagens auferidas pelas multinacionais, e de sua penetração no tecido produtivo local, condiciona de modo profundo as atividades concernentes à política cognitiva. O fato de que seja economicamente irracional desenvolver internamente conhecimento tecnocientífico para produzir algo demandado pelo mercado interno imitativo, de que os bens e serviços que aqui geram o lucro das empresas já foi engenheirado alhures, é fundamental.
O que se verifica, devido também a uma muito menor remuneração da mão-de-obra existente na periferia, é que a empresa que aqui opera, seja nacional ou estrangeira, assuma um comportamento inovativo claramente reflexo. Imitativo, caudatário e relativamente modesto, ele realimenta a tendência primário-exportadora e rentista de nossa classe proprietária que, encerrando o ciclo da industrialização via substituição de importações promoveu a desindustrialização do País. Como não precisa efetivamente inovar, a empresa pode lucrar sem ter que se preocupar em “desviar” o recurso público que recebem para que seus empregados (ou terceirizados) se “qualifiquem”.
O modo como os aspectos socioeconômicos e políticos que privilegio nesta análise condiciona a educação passa também pelo reconhecimento de que nossa política cognitiva, muito mais do que nos países de capitalismo avançado, tem sido orientada pela nossa elite científica. É ela que “diz” o que é uma criança que entra no jardim de infância deve ir aprendendo para poder passar no vestibular de uma universidade pública. É ela que define, em última instância e por default, devido à nossa condição periférica que faz com que outros atores pouco participem na elaboração desta política, as características do nosso pacto da educação.
As “antenas” dessa elite científica estiveram sempre, dada a nossa condição periférica, orientadas pelo que fazem seus pares dos países centrais. É ali que se origina o saber que “cultuam” nas instituições que, como um enclave, foram - à imagem e semelhança - aqui criadas.
Como consequência da adoção de agendas de ensino, pesquisa e extensão de lá provenientes, demandas cognitivas (ou tecnocientíficas) embutidas em muitas das necessidades coletivas por bens e serviços, especialmente aquelas da classe trabalhadora que permanecem desatendidas, permanecem inexploradas.
Entre os muitos exemplos vale citar a situação que ocorreu quando a expropriação da terra dos pequenos agricultores produtores de alimentos e do Estado incitou o latifúndio a potencializar o agronegócio. Ao mesmo tempo que aqueles passaram a ter suas demandas cognitivas desatendidas devido ao desmantelamento da extensão rural, foi criada no início dos anos setenta uma complexa e capilarizada estrutura de geração e difusão de conhecimento para atender ao objetivo de acumulação da classe proprietária.
Entre outros, esse exemplo serve para mostrar que a em todo o mundo baixa propensão da empresa a realizar pesquisa pode ser, também na periferia, contrapesada. De fato, cada vez que um segmento da classe proprietária dotado de poder político ou econômico, tinha, incorporado em seu projeto político, uma demanda por conhecimento novo ou dificilmente obtenível, foi possível, claro que através do “seu Estado”, desenvolvê-lo. Serve também para argumentar que devido à sua alta complexidade e originalidade, as demandas tecnocientíficas embutidas nas necessidades coletivas desatendidas, poderiam gerar um círculo virtuoso de ocupação da capacidade subutilizada de nossas instituições de ensino e pesquisa e de sua expansão e legitimação social.
Retomando o parágrafo que se iniciava com “O que sim quero dizer...”, e salientando que o faço muito de passagem, já que aprofundar o argumento me afastaria do assunto deste texto, é que pouco se deve hoje esperar da propensão de nossa classe proprietária para aproveitar os favores governamentais que desde sempre recebeu para adotar o comportamento “virtuoso” que caracteriza suas congêneres dos países centrais. Políticas orientadas a torná-la competitiva via agregação de valor às commodities, a facilitar sua adesão a uma transição energética ou à adoção de comportamentos socioambientalmente sustentáveis, etc., dificilmente encontrarão sucesso.
Concluindo essa parte, é importante salientar que, ao contrário do que ocorreu nos países centrais, a vigência do pacto da educação não teve como resultado uma situação minimamente favorável à classe trabalhadora. Em função das características que assumiu nossa formação social capitalista, o pacto aqui estabelecido não apresentou nem mesmo os limitados benefícios lá alcançados.
A constatação de que o fraco “desempenho” da nossa educação, sobretudo quando avaliada segundo os indicadores dos países centrais, é consequência do fato de ela, sendo como é, corresponder às necessidades cognitivas demandadas pela classe proprietária, me leva a tomar emprestado uma das frases lapidares de Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise: é projeto”.
Preparando um novo pacto para a educação brasileira
Tendo delineado no final da seção “A conjuntura atual nos países centrais” as características do cenário desejável, o novo projeto societário, o papel que dentro dele irá assumir a economia solidária e como, a partir de sua implantação, se irá gestando uma proposta a ser negociada com a classe proprietária para o estabelecimento de um novo pacto, faço agora menção a mais alguns aspectos de nossa realidade. Apesar da importância de fazê-lo, visto que é assim que se pode conceber ações, o faço de forma muito sintética uma vez que tenho escrito bastante sobre isso na mídia de esquerda.
No que se refere aos aspectos socioeconômicos e políticos que simplificadamente entendo como condicionantes da evolução que terá o pacto, estão presentes na cena brasileira duas estratégias que, embora não excludentes, delimitam cursos de ação bem distintos em termos, entre outras, da política cognitiva.
De um lado, encontra-se a estratégia do “emprego e salário” baseada no estímulo à atividade empresarial para geração de crescimento econômico. Muito alinhada com o nacional-desenvolvimentismo que por décadas orientou nossa política pública, e apesar de ter sido relativamente bem sucedida 20 anos atrás, ela é crescentemente considerada insuficiente para combater o legado de iniquidade, injustiça e degradação ambiental que recebeu o atual governo de esquerda.
Inspirada nas experiências de “revolução industriosa” e no potencial de geração de desenvolvimento da economia solidária, ganha força a estratégia do “trabalho e renda”. Sem pretender exclusividade e compreendendo que a relação de forças manterá o privilegiamento da “reindustrialização empresarial” e a captura privada do poder de compra do Estado, seus partidários ressaltam a conveniência de complementar, através da proposta da “reindustrialização solidária”, a estratégia do “emprego e salário”.
Entre seus argumentos, apontam que dos 180 milhões de brasileiras e brasileiros em idade de trabalhar e que que constituem a nossa classe trabalhadora, apenas 30 têm carteira assinada”; e que existem 80 que nunca tiveram e provavelmente nunca terão emprego.
E chamam a atenção para a experiência histórica internacional dos governos de esquerda que fracassaram na implementação de suas políticas socializantes. A dedicação desses governos em fazer funcionar o Estado e a economia capitalistas para obter recursos para custear a reorientação da política teria sido uma das causas históricas do seu insucesso.
Para evitar que as políticas sociais se tornem reféns do bom funcionamento do capitalismo e possam reconstruir a democracia, dizem, semelhantemente ao que vem ocorrendo no Norte, ser necessário outra governança que fomente arranjos produtivos e de consumo baseados na propriedade coletiva dos meios de produção, na solidariedade e na autogestão.
Partindo da constatação de que a desindustrialização foi uma opção de nossa classe proprietária, de que o fomento da inserção de suas empresas no mercado global implica privilégios desmedidos, e de que estas não se interessam pelo nosso potencial de conhecimento tecnocientífico, os partidários da estratégia “do trabalho e renda” e da proposta da “reindustrialização solidária” defendem uma radical reorientação da política cognitiva.
Para isso, para que seja possível atender aquelas demandas cognitivas embutidos nas necessidades materiais coletivas insatisfeitas, propõem que a elaboração da política cognitiva incorpore, além da elite científica (cujas “antenas” tenderão a seguir orientadas para o Norte), um ator até agora pouco escutado. Esse ator, as trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento, que atuam na docência, pesquisa, planejamento e gestão da política cognitiva é o que detém nosso significativo e crescente potencial tecnocientífico.
Por ser o efetivamente responsável pela sua operacionalização, esse ator é o que poderá promover a reorientação necessária. Isso por ser, por um lado, o que melhor poderá identificar aquelas necessidades por bens e serviços e decodificá-las como demandas tecnocientíficas (muitas delas de evidente originalidade e elevada complexidade), e “trazê-las” para o ambiente onde se definem as agendas de ensino, pesquisa e extensão de nossas instituições. E, por outro, o que melhor poderá representar o interesse público junto ao governo e aos demais atores envolvidos com a política cognitiva.
Concluindo, só resta dizer que o caminho que me parece mais adequado está assinalado. As condições para que ele seja de imediato trilhado estão dadas.
Entre elas, chamo a atenção para uma auspiciosa convergência. Muitas daquelas trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento defendem a estratégia do “trabalho renda” e a proposta da “reindustrialização solidária”. E defendem também que a política cognitiva esteja solidamente ligada aos interesses e valores da classe trabalhadora.
Tudo isso implica que, de imediato, nossa educação deva estar focada no atendimento às demandas cognitiva da economia solidária. É elevada sua capacidade de acumulação de forças políticas e, muito importante no prazo imediato, de fiança de governabilidade para o atual governo. É a partir do potencial do conhecimento que possuem seus integrantes que se irá gestar o novo pac[1] Este texto é uma versão revisada e ampliada do publicado em https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-educacao-funcional-esta-em-crise-que-ocupara-seu-lugar/.