COMO FAZER PARA QUE A ECONOMIA SOLIDÁRIA POSSA ENTRAR NAS
ESCOLAS DE ECONOMIA?
Renato Dagnino
1. Introdução metodológica
Responder esta pergunta supõe uma estratégia que mais além
daquilo que esse texto pode conceber. Na impossibilidade de apresentar uma
“solucionática” o que ele pretende fazer é um diagnóstico da problemática. Para
isso, ele se concentra numa indagação metodologicamente anterior que é o
primeiro passo para chegar lá: por que a Economia Solidária não está entrando
na agenda das escolas de Economia?
É plausível pensar que a agenda de ensino, pesquisa extensão
dessas escolas (daqui para frente, simplesmente, agenda, em itálico)
decorra de uma interação entre sistemas complexos de natureza social,
econômica, produtiva, política (policy e politics).
Prosseguindo com o enfoque sistêmico, concentro minha
atenção na análise de dois sistemas (conceito que, destaco, se diferencia
daquele de setores econômicos). A ideia de que o sistema economia solidária cresce
nos interstícios de menor lucratividade do sistema economia capitalista, embora
grosseira e imprecisa, é útil para modelizar sistemicamente a pergunta que
pretendo ajudar a responder.
Explorá-la, implica averiguar a correlação de forças entre dois
atores situados no ambiente do ensino superior, incluindo aqui as IFs que se
ramificam para o ensino médio (o qual me refiro, daqui para frente e simplesmente,
como universidade). O grupo dos que estão satisfeitos com o estado atual da agenda
e os que possuem razões de natureza acadêmica para alterá-la para, nos limites
de sua governabilidade e por esta via, chegar a remover os obstáculos de
natureza cognitiva à expansão do sistema economia solidária.
Entendo por razões acadêmicas aquelas derivadas de questões estritamente
disciplinares. Fundamentalmente, as que questionam a síndrome do arquipélago: a
universidade é um conjunto de ilhas onde habitam “inexatos” ou “desumanos” que
não desejam ou não conseguem construir pontes. E que aparecem mescladas com
posicionamentos ideológicos que postulam uma missão institucional voltada para
a demanda cognitiva dos pobres.
Para averiguar aquela correlação de forças vou caracterizar
aqueles dois sistemas que integram nossa economia capitalista periférica. É de
sua interação que, em última instância, são gerados os obstáculos cognitivos e
as razões acadêmicas que deles decorrem.
Há sobrada evidência acerca da extrema concentração de
propriedade e de renda e do viés da estrutura estatal que garante e legitima o
sistema economia capitalista, baseado na propriedade privada dos meios de
produção, na competição e na heterogestão. Por isso, me eximo de comentá-lo e
me concentro na análise do sistema economia solidária, baseado na propriedade
coletiva dos meios de produção, na solidariedade e na autogestão. Também, em
favor da brevidade, não justifico aqui a relevância da proposta da Tecnociência
Solidária como um marco analítico-conceitual que, pelo seu foco no espaço
cognitivo, para a mudança da agenda que esta coletânea busca
desencadear.
2.
Introdução histórico-conceitual
A Primeira Semana Social Brasileira, em 1991, que teve como
tema “Mundo do trabalho, desafios e perspectivas”, registrou o apoio da
Cáritas, das pastorais sociais e de sindicatos a grupos de economia popular
solidária.
A Economia Solidária (ES), como conceito, apareceu no Brasil
em 1996 em artigo publicado na Folha de São Paulo por Paul Singer. Desde então,
apareceram bem mais de uma centena de livros, artigos, dissertações de mestrado
e teses de doutorado sobre o tema.
No âmbito acadêmico, devido a uma intenção de contrabalançar
o viés fomentado pelas incubadoras de empresas e Núcleos de Inovação
Tecnológica, a ES aparece com a criação da primeira incubadora tecnológica de
cooperativas populares, na UFRJ, em 1995. Essa iniciativa funcionou como uma
espécie de modelo para as que passaram a funcionar em mais de uma centena de
universidades mediante apoio governamental.
Como política pública, a ES surge em 2003 com a criação da
Secretaria Nacional de Economia Solidária no Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), sob a coordenação de Paul Singer. A partir de então, até o golpe de
2016, apareceram o Cadastro Nacional de Empreendimentos Econômicos Solidários,
os conselhos de Economia Solidária em vários governos estaduais, os Centros de
Formação, a Agência de Desenvolvimento Solidário, as leis estaduais e
municipais, a Política Nacional de Economia Solidária, o Sistema Nacional de Economia
Solidária, etc. Centenas de projetos visando a apoiar os empreendimentos que
iam “brotando” pela mobilização do movimento da ES foram financiados. Embora
esse conjunto de iniciativas já estivesse perdendo força, foi o golpe de 2016
que precipitou o seu desmonte. Sucedendo a um importante debate ocorrido em
2022 acerca de como introduzir a ES de modo transversal e sistêmico na política
pública, foi criada em 2023, novamente no MTE, a Secretaria Nacional de
Economia Popular e Solidária.
No nosso tecido econômico, a ES se organiza mediante uma
infinidade de redes de produção e consumo, bancos comunitários, moedas sociais,
etc. que, apesar de não contarem com subsídio governamental semelhante àquele
que recebem as empresas, crescem no interstícios de menor lucratividade do
sistema economia capitalista
Como movimento social, ela funciona como uma espécie de
correia de transmissão entre esses dois âmbitos (o econômico e o da política
pública), em numerosos fóruns de abrangência municipal, estadual e nacional
onde se discutem as ações dos empreendimentos solidários, suas demandas, e se
busca encaminhar suas propostas junto ao governo.
No âmbito político, a ES se expressa por meio de grupos como
o Núcleo de Apoio às Políticas Públicas da Fundação Perseu Abramo e as Setoriais
estaduais e nacional de Economia Solidária do PT. E, na esfera parlamentar, na
criação de várias frentes de legisladores dispostos a apoiar o sistema economia
solidária.
No âmbito do Conselho Federal de Economia, com a criação do
grupo que auspicia a elaboração deste texto, se inicia um processo que,
aproveitando os terrenos férteis identificar, pode contribuir decisivamente
para a alteração da agenda.
3.
Obstáculos cognitivos exógenos
Embora ideias e teorias alinhadas com aquilo que chamamos
hoje de ES sejam tão velhas quanto o próprio capitalismo, e que eventos
transcorridos durante a Comuna de Paris, a Guerra Civil Espanhola, a Revolução
dos Cravos, e o Chile de Allende tenham assinalado alternativas a ele, a
hegemonia do sistema economia capitalista não permitiu que ela penetrasse no
âmbito acadêmico.
Há que reconhecer que depois do reinado Keynesiano da época
de ouro do Estado do Bem-estar, do pouco sucesso da experiência socialdemocrata
e do impacto do inovacionismo neoschumpeteriano patrocinado pela a avalanche do
neoliberalismo, pouco ali sobrou do pensamento crítico aparentado com o
marxismo, que pudesse colocar a ES na agenda.
4.
Obstáculos cognitivos endógenos
Por estarmos situados num território periférico cujas elites
se auto infligem uma cômoda e funcional condição de dependência cultural (e,
portanto, acadêmica) era de se esperar, por aqui, algo semelhante ao que se
apontou.
Apesar de ter um sido um território prenhe de poderosas contribuições
revolucionárias nas Ciências Humanas, e em particular na Economia, focadas nas
implicações socioeconômicas da condição periférica, pouco sobrou para ser
mobilizado no sentido que nos interessa.
O impacto daquela avalanche neoliberal em nossa universidade
pública, e nela me concentro por razões óbvias, a tornou um polo irradiador das
ideias, teorias, best practices, successful cases, benchmarkings,
e outros instrumentos metodológico-operacionais empresariais aderentes ao seu
marco analítico-conceitual e, por isto, coerentes com a reprodução dos valores
e interesses do sistema economia capitalista.
O que, no limite, faz com que mesmo professores que são
partidários da ES e até os que militam no campo da extensão atuem, por
desconhecimento, em consonância com uma agenda pouco coerente com os
valores interesses do sistema economia solidária
Por considerar os obstáculos cognitivos como sendo os
fundacionais e, também, os mais importantes, a serem atacados para a
modificação da agenda, e por ser a universidade pública o locus
onde deve ocorrer essa transformação, é intuitiva a ideia de que é nela que
deve concentrar-se a ação do Cofecon. No que segue, depois de analisar
elementos ainda pouco tratados, indico algumas mediações a essa ação.
5.
Movimentos centrífugos e centrípetos
Para ir concluindo na direção da pergunta de “como remover
os obstáculos cognitivos?” resgato uma crítica que tenho feito à atuação dos
partidários de movimentos contra-hegemônicos na universidade. Ela aborda o que
eu tenho me referido, para analisar casos semelhantes ao da ES, como um
movimento centrífugo. Este movimento, que afasta os atores descontentes do
centro do círculo de poder da universidade em que se disputa a hegemonia acerca
de sua orientação, é justificado por eles como necessário para gerar um espaço
de acumulação de forças. Ou, mais pragmaticamente, como uma alternativa que
permite, em conjunto com seus pares que com eles comungam orientações
cognitivas e razões acadêmicas, a realização profissional que merecem.
O movimento centrípeto focado na disputa por hegemonia no
âmbito desse círculo de poder é preterido. Uma falsa moral defendida pelos que
querem manter o status quo que alegam querer preservar a pluralidade,
autonomia e liberdade de cátedra, potencializam o movimento centrífugo. O
movimento centrípeto, potencialmente capaz de melhor aproveitar a energia
desses atores insatisfeitos e cooptar seus pares para uma via distinta, ao ser
desqualificado, os leva a não se envolver com a modificação da sua agenda,
hoje aderente ao sistema de economia capitalista.
Ao invés de atuar politicamente no sentido de orientar essa agenda
na direção do sistema economia solidária e, em particular, ao que tenho
denominado, particularizando o espaço cognitivo, de Tecnociência Solidária,
esses partidários da ES têm se afastado deste centro. Muitas vezes por razões
compreensíveis de “sobrevivência” eles buscam outros locii, como, por
exemplo, as incubadoras. Ali se desenvolve, devido à atuação de alunos e escassos
professores (na sua quase totalidade provenientes das ciências humanas e
dedicados à extensão), um notável processo teórico-prático de mudança de agenda.
Em que pese o seu caráter importante, criativo e revolucionário, ele se limita
ao escasso número de alunos que, insatisfeitos com o conhecimento que vem
recebendo, se aproxima das incubadoras.
O processo em curso, de curricularização da extensão, é uma
“janela de oportunidade” fundamental a ser aproveitada para desencadear um
movimento centrípeto orientado à disputa de hegemonia contra aqueles que,
alegando aquela falsa moral, defendem a manutenção da agenda da economia
do sistema economia capitalista no âmbito da universidade pública. E, também, à
sedução e cooptação daqueles que ainda ignoram as alternativas a essa agenda
que há três décadas vem sendo concebidas naqueles diferentes âmbitos mencionados
na seção de Introdução analítico-conceitual.
6.
Como remover os obstáculos cognitivos?: olhando
para trás
Há muito ocorrem na América Latina movimentos centrípetos
visando a evitar a reprodução acrítica (e em grande medida auto-imposta devido
à crença no mito transideológico da neutralidade e do determinismo da
tecnociência) da agenda de ensino, pesquisa e extensão praticada nos países
centrais.
Um dos movimentos mais bem estruturado e mais importante para
o objetivo deste texto, embora não tenha alcançado muito êxito, é o
desencadeado pelo Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e
Sociedade (PLACTS). Já na década de setenta, ele propunha mudanças na agenda
orientadas à geração de conhecimento aderente a um projeto nacional que visava à
soberania em relação aos países centrais e ao atendimento das “necessidades
básicas” da população. A avaliação que faço do acerto com que seus fundadores
conduziram os momentos descritivo e explicativo de sua análise é tão positiva
que é nela em que eu me apoio para a elaboração do marco analítico conceitual
que origina a proposta da Tecnociência Solidária.
Em relação ao momento normativo, entretanto, minha avaliação
é distinta. A circunstância em que vivia a América Latina, levou a que o
PLACTS, embora reconhecesse as limitações (evidenciadas pela Teoria da
Dependência) que o imperialismo e a classe proprietária colocavam ao que
desejavam, não conseguiu a adesão da universidade para alterar sua agenda.
Naquela circunstância, uma esquerda dividida entre um
projeto de adesão a uma burguesia nacional supostamente capaz de enfrentar-se
ao imperialismo e outro, que propunha a luta armada, a questão da mudança da agenda
não foi abordada de modo consequente. O primeiro projeto tinha como ator
central a empresa nacional. Contudo, para atender ao consumo imitativo de bens
e serviços já engenheirados no Norte, ela não precisava inovar (explorar
mais-valia relativa) como lá tipicamente funciona o capitalismo. Pelo contrário,
as empresas locais podem seguir aproveitando-se da possibilidade mais cômoda de
usufruir da mais-valia absoluta que a variante espoliadora do capitalismo
periférico que engendra sua classe proprietária e “seu” Estado. O fato de que o
projeto que persiste até agora com diferentes designações (nacional
desenvolvimentismo, etc.), e de que permanece vigente o mito transideológico da
neutralidade e do determinismo da tecnociência, explica, em última instância,
porque a questão da agenda permaneceu afastada da política
universitária.
7.
Como remover os obstáculos cognitivos?: olhando
para frente
A Introdução histórico-conceitual indica uma mudança nessa
situação. Um marco analítico-conceitual que renova o PLACTS e o pensamento de
autores estrangeiros e, principalmente, nacionais (como Paulo Freire e Darcy
Ribeiro), e o surgimento de um novo ator, o movimento da ES, podem alterar a
correlação de forças em favor daqueles que querem mudar a agenda.
Entre os muitos fatores que contribuem para o fortalecimento
desse novo ator, está um ameaçadoramente atual, a consciência acerca da
necessidade de superar o agravamento da crise sistêmica do capitalismo. E
também o fato de que no nível individual estrito, do seu negócio, a empresa,
mesmo que se dispusesse fazê-lo, é incapaz de internalizar as externalidades
negativas que vem causando. A que o fizer contrariando a lógica atomizada e
intrinsecamente egoísta que a rege, será excluída do mercado por não conseguir
transferir seu maior custo de produção ao preço.
Mas entre esses fatores, o que quero ressaltar, dada sua
característica de um possível “fato portador de futuro” para a promoção da
mudança da agenda, é a existência de um governo em que muitos de seus
dirigentes de esquerda, sobretudo os que estudaram algo de Economia, pertencem
a uma geração que conheceu e valorizou a ES.
Para mobilizá-los, o Cofecon deveria, em primeiro lugar,
considerar que talvez seja a necessidade de contemplar o interesse de outros
integrantes da coalizão de governo, o que explique o fato de eles não estarem ainda
atuando de forma suficientemente incisiva.
Alguns deles não têm ressaltado a especificidade do sistema
economia solidária e o mencionam de modo indiferenciado em relação a propostas
como a da economia criativa, circular, popular, verde, de impacto ou
sustentável que, na realidade atendem a outros interesses e valores. Enredados
na contumaz armadilha socialdemocrata de tentar eficientizar o sistema economia
capitalista para poder financiar políticas socializantes, não levam em conta a
importância da orientação dos volumosos recursos da compra pública para a ES. Crescentemente
entendida pelos partidários da ES como a principal forma de expandir e
consolidar suas redes de produção e consumo e, dessa maneira, aproveitar seu
papel indutor de um estilo de desenvolvimento mais justo, sustentável, ela é
vista, ademais, como garantidora da governabilidade que precisa o atual
governo.
Há que fazer com que esses dirigentes políticos materializem
seu grande poder de alavancagem de mudança da agenda. Junto com os
setores mais diretamente envolvidos com o sistema economia solidária e, em
particular, no campo em que se centra este texto, com os professores, alunos e
funcionários da universidade (onde evidentemente o Cofecon deve seguir atuando),
eles precisam ser cooptados.
Uma oportunidade para avançar nesse sentido é o XXV
Congresso Brasileiro de Economia, a realizar-se em novembro, onde haverá uma
mesa organizada pelo Cofecon em que pela primeira vez se conseguirá divulgar o
tema da ES no âmbito dos economistas mais destacados. Como providência passível
de ser encaminhada em seguida me arrisco a sugerir que ele envie um documento
aos dirigentes políticos que demonstraram no passado simpatia com a ES
solicitando que sugiram providências no sentido de alteração da agenda.