A greve na universidade e a Ciência e Tecnologia
Renato Dagnino
No dia 4 de maio, participei de uma reunião do GT de Ciência e Tecnologia do ANDES do qual faço parte representando a ADunicamp.
Neste texto, reproduzo observações que fiz ali acerca do que me parecem ser algumas das causas estruturais, relacionadas à política cognitiva (conceito com o qual enfeixo as Políticas de Educação e a de CTI), que levam à situação enfrentada pelas universidades federais atualmente em greve.
Utilizo como referência a metáfora dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse (Cientificismo, Produtivismo, Inovacionismo e Empreendedorismo), que uso nas minhas aulas de Política Científica e Tecnológica por considerar que eles estão invadindo quase sem resistência a universidade pública.
Eles são considerados pelos que os engendraram ou apoiam, claro que sem a conotação negativa que lhes atribuo, como arautos da universidade do futuro; como uma espécie de bandeirantes desbravadores que lideram uma modernização que conduzirá o País a um estágio superior de desenvolvimento.
Por outr@s colegas, a quem dirijo este texto, os Cavaleiros são vistos como uma distorção passível de ser tolerada e aceita. Afinal, eles não se aparentam com o negacionismo, o fascismo e os ataques dos que estão privatizando o ensino superior.
Uma terceira parcela, ainda minoritária e entre os quais me incluo, não os considera como meras distorções, mas como perversões a serem mais bem entendidas e combatidas.
Concentro-me em dois desses Cavaleiros: o Produtivismo e o Inovacionismo. Em primeiro lugar, por que dois temas importantes encaminhados ao GT pelo conjunto do movimento docente, relacionados ao que denominam orientação empresarial de nossas agendas de ensino, pesquisa e extensão, guardam estreita relação com esses dois Cavaleiros. Em segundo lugar por que, dado que por dever de ofício tenho analisado exaustivamente suas implicações, considero que minhas observações podem ser úteis.
Embora minha universidade não estivesse em greve, argumentei que o resultado da discussão que tivemos acerca do que relato aqui deveria ser encaminhado ao comando de greve para serem incluídos nas aulas públicas e outras atividades da greve. E é por isso que escrevi este texto.
O ambiente em que estávamos me permitiu o uso de uma linguagem franca e ideologicamente referenciada aos valores e interesses dos docentes de esquerda e contaminada com conceitos que pertencem ao léxico do nosso movimento; desculpo-me por eles serem aqui empregados.
Embora reconheça que eles devessem ser mais bem explicados para um público mais amplo, penso que as companheiras e companheiros das nossas instituições de ensino e pesquisa que quero despertar para a problemática que trato (desculpando-me antecipadamente por não apresentar aqui a “solucionática” que venho formulando) me irão entender.
2. Sobre o Produtivismo
Para melhor explicar este Cavaleiro haveria que tratar do primeiro, o Cientificismo. Aquele que, apoiado no mito transideológico da neutralidade do conhecimento tecnocientífico ainda aceito pelos nossos pares de esquerda (inclusive pelos marxistas ortodoxos), faz com que se subordinem a uma política cognitiva hegemonicamente elaborada pela nossa elite científica e “seus” tecnocratas.
Apesar de emular a dinâmica da Tecnociência Capitalista que, todos sabemos, é portadora de “Sete Pecados Capitais” (deterioração programada, obsolescência planejada, desempenho ilusório e limitante, consumismo exacerbado, degradação ambiental, adoecimento sistêmico e sofrimento psíquico), ela faz com que a sigamos “professorando”.
O Cientificismo, ao induzir à reprodução de agendas de ensino, pesquisa e extensão concebidas no Norte global, faz com que nos sujeitemos à guerra em que lá se envolvem, “inexatos” e “desumanos”, usando como arma a sua “produção científica”, para competir pelo recurso alocado, majoritariamente pelo governo, a suas atividades.
Competição que, ao fim e ao cabo, pode lá promover o “transbordamento socioeconômico” resultante da destinação de recurso governamental para P&D empresarial. E que pode influenciar na seleção feita pelas empresas a respeito de onde vão gastar a ínfima parte de seu orçamento de P&D que destinam a projetos conjuntos com a universidade.
Antes de examinar como isso se reflete entre nós, vale exemplificar o que ocorre por lá. O exemplo sempre citado são os EUA. Segundo pensam os fazedores da nossa política, essa guerra alavancaria recurso significativo para a universidade. Mas, o que ali é captado para a realização de projetos conjuntos corresponde a apenas 1% do custo da sua universidade. O que mostra o quão equivocada está a elite científica e “seus” tecnocratas a respeito da possibilidade de que nossa universidade, situada na periferia do capitalismo e cujas empresas bem conhecemos, possa vir a financiar uma parte importante de seu custo por essa via.
Evidencia esse equívoco o fato de nossos MITs, ao contrário do que lá ocorre, onde 20% do orçamento vem de projetos conjuntos com empresas, este valor (como mostra o que ocorre na Unicamp) sequer ultrapasse aquela média estadunidense de 1% .
A absurda “jabuticaba” do patenteamento universitário e outras formas de indução de um comportamento competitivo entre os docentes, para assim reforçar a orientação de agendas de ensino, pesquisa e extensão na direção daquilo que a elite científica alega ser a demanda tecnocientífica das nossas empresas, devem ser compreendidas como consequência dessa cadeia Cientificismo-Produtivismo.
Evidências como que aqui se aponta poderiam estar embasando iniciativas do movimento docente no sentido de um questionamento mais qualificado dessa cadeia.
Não obstante, o que se vê é um protesto restrito ao espaço dos “corredores”, orientado a instituições como a Capes, o CNPq ou as FAPs. Como se elas não estivessem desde sempre orientadas por nossos colegas e ex-alunos com os quais, é importante salientar, nunca discutimos em nossas reuniões de departamento etc., e em nossas aulas e laboratórios, essas questões.
Aparece como elemento externo uma reclamação contra a empresa local. Ela nos estaria pressionando para que nossas agendas e ensino, pesquisa e extensão reproduzissem aquelas das universidades do Norte visando a utilizar o conhecimento que produzimos em seu benefício. O que, como se aborda em seguida, contraria toda a evidência disponível.
Predomina, de qualquer forma, uma associação indevida entre o necessário e salutar procedimento das professoras e professores universitários, de divulgar o resultado de seu trabalho entre seus pares e para a sociedade em geral (a sua produção científica ), e a perversão que envolve o Produtivismo.
Por não se ter elementos analítico-conceituais e informação empírica como os que se estão aqui indicando, não se está identificando essa associação como indevida. Ao contrário, se interpreta essa perversão como uma mera distorção em relação àquele justo procedimento; como uma exacerbação derivada de equívocos, de vieses e preconceitos profissionais, ou “má-vontades” de burocratas desinformados da realidade que enfrentam.
Isso termina por fazer com que colegas de esquerda aceitem o Produtivismo como uma retribuição, ou uma espécie de prestação de contas de nossa atividade docente (ou melhor, de nossa “produção científica”, como artigos, patentes, etc.) ao povo pobre que paga o imposto que mantém os laboratórios equipados, o ar-condicionado funcionando e o pagamento do salário.
Há, portanto, que considerar a hipótese de que essa perversão seja derivada do modelo adotado pela elite científica que, hegemonicamente, elabora (formula, implementa e avalia) nossa política cognitiva visando a emular aqui, na periferia do capitalismo, o que ela idealiza como sendo a realidade dos países centrais.
3. Sobre o Inovacionismo
Também em relação a este segundo Cavaleiro há carências de informação.
A primeira, é que ele pouca relação guarda com o que @s colegas que o engendram alegam ocorrer nos países centrais tomados como modelo.
Uma outra decorrência dessa olhada para o ambiente da política cognitiva dos EUA mostra que, por casualidade, o recurso captado pela universidade para a realização de projetos conjuntos com empresas corresponde, também, a apenas 1% do que elas gastam com P&D. O que permite afirmar que o conhecimento resultante da pesquisa universitária, que é o que motivaria a empresa estadunidense para a realização de projetos conjuntos, não é atrativo para ela. Que não é isso o que elas querem da universidade; que não é por isso que elas concordam, com o poder que possuem de influenciar o governo estadunidense, que uma parte considerável do gasto público para a pesquisa se oriente para a universidade.
Por extensão, é possível supor que, com mais razão, nossa empresa local não teria por que se interessar por esse conhecimento. Nossa condição periférica condiciona, por um lado, uma dependência cultural que engendra um padrão de consumo imitativo que demanda bens e serviços já engenheirados nos países centrais. E, por outro, faz com que a opção economicamente racional para a empresa seja a extração de mais-valia absoluta (e não a de mais-valia relativa) condicionando uma escassa propensão à inovação e, menos ainda, à pesquisa empresarial.
De fato, tal como lá ocorre, é desprezível o número de empresas inovadoras locais que consideram importante para sua estratégia inovativa, a realização de projetos conjuntos com a universidade.
A segunda incompreensão, decorre da anterior. Ela tem a ver com a percepção de que a realização de projetos conjuntos de interesse de empresas estaria orientando nossas agendas de ensino e pesquisa, especialmente as da pós-graduação nas ciências duras, num sentido adverso à natureza da universidade pública.
Uma análise, mesmo que superficial, permite constatar como essa percepção é equivocada: essas agendas, pela própria natureza fundacional de enclave de nossa universidade, sempre estiveram orientadas por aquilo que, no Norte, é o interesse empresarial. Ou seja, que mesmo que houvesse por parte da empresa local, contrariando o que é a norma nos países centrais, um interesse na realização de projetos conjuntos com a universidade, isto não iria influenciar significativamente nossas agendas. E que, ao contrário, são interesses conservadores, internos à universidade, os que mantêm sua inadequação ao projeto político da esquerda universitária.
A terceira incompreensão deriva de mais um desconhecimento a respeito de como efetivamente se dá a relação universidade-empresa nos países centrais. É aqui majoritariamente aceita a ideia de que ela ocorre da maneira como alega e dissemina a elite científica e “seus” tecnocratas. Isto é, pela via da transferência de conhecimento originado na pesquisa universitária ou na criação de empresas de professores ou alunos nas incubadoras; e por isso elas e suas startups derivadas da ação do quarto Cavaleiro do Apocalipse, o Empreendedorismo, deveriam ser (como o são) vigorosamente estimuladas.
De novo, para contrastar com nossa realidade, vale lembrar o caso dos EUA. Lá, ao contrário do que aqui se alega, não é o conhecimento resultante da pesquisa universitária o que interessa à empresa (o que implicaria na realização de projetos conjuntos) e sim o conhecimento incorporado nas pessoas formadas mediante essa pesquisa. De fato, mais da metade dos mestres e doutores formados em ciência dura nos EUA são contratados, a cada ano, pelas empresas para realizarem P&D nos seus laboratórios; afinal, é para isto que, em todo o mundo, eles são formados.
Aqui, entre 2006 e 2008 (e tomo este período por que foi o último em que o País esteve “bombando” e os empresários ganhando muito dinheiro), a elite científica esperava que eles fossem contratar os noventa mil que formamos nesses três anos. O fato de que foram contratados apenas sessenta e oito deles para fazer P&D nas nossas empresas inovadoras, é suficiente (mas há muitos outros) para mostrar a disfuncionalidade, mesmo que apenas para obtenção de lucro empresarial, da nossa política cognitiva .
A empresa local, por não precisar fazer pesquisa, não tem porque se preocupar com o resultado da pesquisa que se faz na universidade; seja o desincorporado (como ocorre no Norte), seja o incorporado em pessoas (ao contrário do que lá ocorre).
Na realidade, 80% das empresas inovadoras, quando perguntadas sobre quais das cinco atividades inovativas é mais importantes para sua estratégia de inovação respondem que é a aquisição de máquinas e equipamentos. Como apontado antes, isso é uma consequência óbvia do mercado imitativo que temos.
Não é plausível a ideia genérica de que a empresa se interesse em se imiscuir no conteúdo de nossa pesquisa. Esse conteúdo permanece pouco funcional ao que deveria ser a universidade pública devido a uma dinâmica que, apesar de interna à universidade, é condicionada pela nossa política cognitiva. O que não significa que não existam exceções a esse comportamento típico da periferia; o ímpeto privatizante neoliberal os têm tornado cada vez mais frequentes. Estudos sobe sua motivação mostram e ela está enraizada no interesse específico dos mesmos atores que, atuando agora “de baixo para cima”, participam de elaboração da política cognitiva.
Reitero que, ao contrário do que ainda é o pensamento majoritário no âmbito da esquerda, o Inovacionismo não decorre de uma pressão da empresa local para que assuntos de seu interesse sejam pesquisados na universidade. Que não é devido a uma busca das empresas por aumentar seu lucro que as agendas de ensino, pesquisa e extensão que “professoramos” sigam orientadas para conteúdos que ainda se mantêm importantes nos países centrais. Mas que aqui estão longe de serem coerentes com as demandas tecnocientíficas embutidas nos bens e serviços que satisfazem necessidades coletivas desatendidas.
E que, ao contrário também da interpretação dominante no âmbito da esquerda, a complementação salarial e os outros benefícios que buscam (e que quando obtêm tendem a se ausentar das greves!), não provém de recursos das empresas. É o fundo público que direta ou indiretamente (quando o recurso governamental alocado à empresa exige relação com a universidade), que se transmuta em pagamento de professores e alunos. A ínfima participação da empresa no financiamento daqueles arranjos endógenos e exógenos não permite que sigamos imputando a uma privatização da universidade o que estamos presenciando. O que estamos presenciando no nosso meio é um misto não menos perverso de “oessização” e parceria público-privada.
4. Conclusão
Por considerar que momentos de greve devem ser usados pelos trabalhadores e trabalhadoras para analisar as causas que conduzem às suas reivindicações e que uma greve geral é uma conjuntura ímpar para explicar à sociedade (particularmente às famílias dos alunos e aos fazedores de política) as causas estruturais da situação em que nos encontramos, acho que os dois temas aqui abordados devem ser nela discutidos.
É necessário que o movimento docente de esquerda mostre à sociedade que, na universidade, não somos todos iguais. Que há docentes, muitos dos quais se intitulam de esquerda, que são responsáveis pela manutenção e reprodução dessas duas perversões. Que são eles que, com o poder que lhes confere o mito transideológico da neutralidade da tecnociência capitalista, exacerbado pela nossa condição periférica, os que conscientemente ou não, mantêm a institucionalidade da política cognitiva, interna e externa à universidade, que realimenta as causas estruturais que dificultam a implementação do projeto da esquerda universitária.
É a pressão de colegas que se autodenominam “pesquisadores empreendedores” para legitimar sua atividade mediante os arranjos institucionais que engendram endógena e exógenamente à universidade, os arautos dos Cavaleiros do Apocalipse. E é sua habilidade de compor com a tradicional elite científica que assegura a manutenção da política cognitiva que impede que a universidade se legitime junto ao povo que a torna possível. Sua reação pervasiva e nem sempre apenas velada à ação dos “pesquisadores extensionistas”, focados no reprojetamento e na adequação sociotécnica da tecnociência capitalista na direção da tecnociência solidária (o melhor caminho para reorientar nossas agendas!), é um poderoso empecilho à superação da universidade operacional de que nos fala nossa mestra Marilena Chauí.