quinta-feira, 26 de março de 2020

DEMOCRACIA: REGIME SOCIAL E POLÍTICO DIFÍCIL E DE ALTO PREÇO




Para uma reflexão sobre o pensamento autoritário e as ameaças veladas ao Estado Democrático de Direito no Brasil

Por Anísio Spínola Teixeira (Caetité-Bahia, 12 de julho de 1900 - Rio de Janeiro, 11 de março de 1971. Jurista, intelectual, educador e escritor brasileiro).

“Sabemos já o que seja democracia. Conhecemos as suas promessas e os seus frutos, mas sabemos também que é, por excelência, um regime social e político difícil e de alto preço. Todas as suas virtudes têm um reverso: a dificuldade. O seu próprio lema, tão velho e tão sonoro, de liberdade, de igualdade, de fraternidade, é uma forma condensada dessas dificuldades. A liberdade não é ausência de restrições, mas autodireção, disciplina compreendida e consentida; a igualdade não é fácil nivelamento, mas oportunidade igual de conquistar o poder, o saber e o mérito; e a fraternidade é mais do que tudo isto, mais do que a virtude, mais do que saber: é sabedoria, é possuir o senso profundo de nossa identidade de destino e de nossa identidade de origem.

Democracia é, assim, um regime de saber e de virtude. E saber e virtude não chegam conosco ao berço, mas são aquisições lentas e penosas, por processos voluntários e organizados. Na sua competição com outros regimes, a desvantagem maior da democracia é a de ser o mais difícil dos regimes – por isto mesmo o mais humano e o mais rico. Todos os regimes – desde os mais mecânicos e menos humanos – dependem da educação. Mas a democracia depende de se fazer filho do homem – graças ao seu incompatível poder de aprendizagem – não um bicho ensinado, mas um homem. Assim, embora todos os regimes dependam da educação, a democracia depende da mais difícil das educações e da maior quantidade de educação.


Há educação e educação. Há a educação que é treino, que é domesticação. E há educação que é formação do homem livre e sábio. Há educação para alguns, há educação para muitos e há educação para todos. A democracia é o regime da mais difícil das educações, a educação pela qual o homem, todos os homens e todas as mulheres aprendem a ser livres, bons e capazes. Nesse regime, pois, a educação faz-se o processo mesmo de sua realização.


Nascemos desiguais e nascemos ignorantes, isto é, escravos. A educação faz-nos livres pelo conhecimento e pelo saber e iguais pela capacidade de desenvolver ao máximo os nossos poderes inatos. A justiça social, por excelência, da democracia consiste nessa conquista da igualdade de oportunidade pela educação. Democracia é, literalmente, educação. Há entre os dois termos uma relação de causa e efeito. Numa democracia, pois, nenhuma obra supera a da educação.


Todos falamos em regime de justiça social, porém haveis de me permitir sublinhar o sentido de justiça social da democracia. Nascemos diferentes e desiguais, ao contrário do que pensavam os fundadores da própria democracia. Nascemos biologicamente desiguais. Se a democracia pode constituir-se para nós um ideal, um programa para o desenvolvimento indefinido da própria sociedade humana, é que a democracia resolve o problema dessa dilacerante desigualdade. Oferecendo a todos e a cada um oportunidades iguais para defrontar o mundo, a sociedade e a luta pela vida, a democracia aplaina as desigualdades nativas e cria o saudável ambiente de emulação em que ricos e pobres se sentem irmanados nas mesmas possibilidades de destino e de êxito. Esta a justiça social por excelência da democracia. A educação é, portanto, não somente a base da democracia, mas a própria justiça social.


Por que estamos a fundá-la hoje? Porque não tivemos educação, a educação universal e livre que cria a democracia. Falamos em democracia, temos aspirações democráticas, sentimentos democráticos. Suspiramos pela democracia. Mas nunca lhe quisemos pagar o preço. O preço da democracia é educação para todos, educação boa e bastante para todos, a mais difícil, repetimos, das educações: a educação que faz homens livres e virtuosos. E por que não a tivemos? Porque, força é insistir, jamais fizemos da educação o serviço principal da República.


A escola sempre foi um dos deveres mais relegados e menos sérios do poder público; a polícia, a cadeia foram sempre mais importantes do que a escola pública. Como iremos organizar o sistema de educação para todos, que nos salve de nossos vícios e nos crie as condições para a democracia?


Longe se vai a fase do desenvolvimento democrático em que se supunha que a escola devia ser neutra e apolítica. Hoje, desafiados pela própria evolução das instituições democráticas, precisamos fortalecer aqui e podar e restringir ali, pois aprendemos – e a que preço! – que a democracia não se realiza por si mesma, mas é um produto da vontade organizada e de um propósito lúcido para a conquista dos seus objetivos. Tanto vale dizer que a democracia se faz, dia a dia, mais desenganadamente intencional, consciente e política. Dentre as instituições a fortalecer em sua luta pela eficácia está, mais do que qualquer outra, a da escola.


Não é suficiente instruir, mas educar as consciências, melhor, esclarecê-las de modo a levá-las à compreensão dos ideais democráticos. Ensinar a liberdade de consciência, chave essencial da compreensão de tudo mais. Ensinar a humanização da condução social que eliminará tudo quanto de odioso contém o mundo de hoje. Ensinar que a força é apenas instrumento da inteligência e que esta não se deve aviltar a serviço daquela. Ensinar atitudes e ideias com equilíbrio da personalidade”.


REFERÊNCIA 


TEIXEIRA, Anísio Spínola. Educação é um direito. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.


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